domingo, 30 de novembro de 2014

FOI PAULO O CRIADOR DO CRISTIANISMO?

As dúvidas nutridas sobre Paulo, segundo várias revistas de grande circulação no país, têm sido uma constante. Desta feita, a Revista Superinteressante vem com uma matéria de capa, em sua edição de dezembro de 2003, acusando o apóstolo dos gentios de traição. De acordo com o artigo escrito na Revista supracitada, Paulo traiu Jesus e iniciou, por auto recriação, o Cristianismo, uma forma de religião baseada numa visão helênica. 

Para responder a essa e outras indagações desautorizadas sobre a pessoa de Paulo, transcrevo, abaixo, o artigo do Pastor Augusto Nicodemos(*), na sua íntegra. 


Uma das revistas de grande circulação no Brasil, a Superinteressante , publicou em sua edição de dezembro de 2003 uma matéria de capa onde acusa Paulo de ter traído Jesus e ter iniciado o Cristianismo, que acabou prevalecendo sobre o Judaísmo reformado que Jesus teria desejado implantar. Não é a primeira vez que esta acusação é feita, mas existe uma história até chegarmos aqui.

Paulo sempre foi visto pelo Cristianismo antigo e histórico como fiel apóstolo de Cristo, responsável pela interpretação e sintetização do que a vida e obra de Cristo representam. Há uma continuação direta entre o conceito de Reino pregado por Jesus e aquele da justificação pela fé defendido por Paulo, conceito este que, especialmente debaixo da influência da experiência de conversão de Lutero, foi considerado na Reforma como o centro da teologia de Paulo.

Debaixo da influência do pietismo pós-reforma, no entanto, o centro da teologia de Paulo passou a ser entendido como o processo de salvação individual e santificação. O centro deslocou-se do aspecto forênsico (justificação) para aspectos mais pneumáticos e éticos da pregação Paulina. Com a chegada do racionalismo nos estudos neotestamentários no século XVII, surgiram diferentes interpretações de Paulo por parte de várias escolas alemãs de estudos bíblicos. F. C. Baür e a Escola de Tübingen entenderam que o centro do pensamento de Paulo não era sua cristologia, mas sua pneumatologia. Em particular, na antítese entre o espírito e a carne. Essa antítese era entendida em termos hegelianos, como se referindo à antítese entre o absoluto e infinito (espírito) e o finito (carne). Paulo teria desenvolvido essa antítese em reação ao cristianismo judaico. Baür conseguiu estabelecer firmemente nos círculos acadêmicos modernos a ideia de que Paulo desenvolveu sua teologia em separado de Jesus e dos demais apóstolos.

Esse pensamento foi fortalecido pela obra de outro teólogo liberal alemão, Wilhelm Wrede, para quem a essência do pensamento de Paulo é a doutrina de Cristo e a sua obra – redenção em escala cósmica. Paulo teria tornado os fatos redentivos (encarnação, morte e ressurreição) em fundamento da religião. Portanto, a história da redenção seria o pilar fundamental do cristianismo Paulino. A única maneira plausível pela qual Paulo poderia ter tomado a figura do Jesus histórico e a transformado no Cristo Paulino é se ele já tivesse em sua formação e mente alguns conceitos pré-definidos sobre um ser divino (o mito do redentor cósmico das religiões de mistério), que ele então teria transferido para o Jesus histórico debaixo do impacto da ressurreição (que para Wrede não foi literal). Como resultado, Wrede aprofunda ainda mais a separação entre Paulo e Jesus.

Depois dele, os estudiosos voltaram-se para o fenômeno das religiões populares da época de Paulo, no helenismo, em busca das fontes e origens de seu pensamento. Focalizaram-se especialmente no sincretismo religioso daquela época, que era o resultado da invasão das religiões orientais de mistério na cultura grega. Bousset, um dos estudiosos mais destacados desse período, explicou o Cristo de Paulo como uma reinterpretação mística do Cristo escatológico da igreja palestina primitiva. Para ele, Paulo havia "recauchutado" o conceito e gerado a ideia do Kurios pneumático, sob a influência do cristianismo helenista (que já existia antes dele) e das religiões de mistério. Ou seja, Paulo teria se afastado completamente do evangelho judaico pregado por Jesus e criado uma religião helenística.

Algumas tentativas foram feitas para encontrar a matriz do pensamento de Paulo no gnosticismo. Reitzenstein apelou para a literatura Hermética, que reflete uma religião influenciada pelo Judaísmo, religiões egípcias e orientais. Reitzenstein acreditava que Paulo havia sido profundamente influenciado por esse tipo de gnosticismo helenista, pois ele usava muitas palavras similares, como psikukos , pneumatikos , gnosis , agnosia , potizein , etc. Para ele, Paulo foi o maior de todos os gnósticos. Sua tese deixou marcas profundas nos estudos paulinos.

Estas teses do antigo liberalismo alemão sobre a origem do pensamento de Paulo estão hoje largamente desacreditadas nos meios acadêmicos da Europa e Estados Unidos, de onde vem grande parte da teologia que desembarca aqui no Brasil. Os estudiosos mais e mais perceberam de que a estrutura do pensamento de Paulo não é a cristologia pneumática que ele teria elaborado. A matriz do pensamento de Paulo não está no helenismo, mas na revelação histórica de Cristo na plenitude dos tempos, o cumprimento cristocêntrico das promessas feitas a Israel. Vide a obra gigantesca de Herman Ridderbos, neste sentido.
Entretanto, alguém precisa dizer aos Galileus, Isto é, Épocas e Superinteressantes da vida que estas teses que sempre levantam são de uma fase dos estudos neotestamentários já superada. São apenas matérias sensacionalistas. Paulo nunca traiu Jesus. Ele não é o autor do Cristianismo e nem criou uma forma de Cristianismo que fosse diferente em essência daquela preconizada no Antigo Testamento e estabelecida por Jesus Cristo. É lamentável constatar que a teologia brasileira está sendo feita não por teólogos responsáveis, mas por jornalistas incultos, despreparados e desatualizados.
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(*) É paraibano e pastor presbiteriano. É bacharel em teologia pelo Seminário Presbiteriano do Norte (Recife), mestre em Novo Testamento pela Universidade Reformada de Potchefstroom (África do Sul) e doutor em Interpretação Bíblica pelo Westminster Theological Seminary (EUA), com estudos no Seminário Reformado de Kampen (Holanda). Foi professor e diretor do Seminário Presbiteriano do Norte (1985-1991), professor de exegese do Seminário JMC em São Paulo, professor de Novo Testamento do Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper (1995-2001), pastor da Primeira Igreja Presbiteriana do Recife (1989-1991) e pastor da Igreja Evangélica Suiça de São Paulo (1995-2001). Atualmente é chanceler da Universidade Presbiteriana Mackenzie e pastor auxiliar da Igreja Presbiteriana de Santo Amaro. É autor de vários livros, entre eles O que você precisa saber sobre batalha espiritual (CEP), O culto espíritual (CEP), A Bíblia e Sua Familia (CEP) e A Bíblia e Seus Intérpretes (CEP).