As dúvidas nutridas sobre Paulo, segundo várias revistas de grande circulação no país, têm sido uma constante. Desta feita, a Revista Superinteressante vem com uma matéria de capa, em sua edição de dezembro de 2003, acusando o apóstolo dos gentios de traição. De acordo com o artigo escrito na Revista supracitada, Paulo traiu Jesus e iniciou, por auto recriação, o Cristianismo, uma forma de religião baseada numa visão helênica.
Para responder a essa e outras indagações desautorizadas sobre a pessoa de Paulo, transcrevo, abaixo, o artigo do Pastor Augusto Nicodemos(*), na sua íntegra.
Uma das revistas de grande circulação no Brasil, a Superinteressante ,
publicou em sua edição de dezembro de 2003 uma matéria de capa onde
acusa Paulo de ter traído Jesus e ter iniciado o Cristianismo, que
acabou prevalecendo sobre o Judaísmo reformado que Jesus teria desejado
implantar. Não é a primeira vez que esta acusação é feita, mas existe
uma história até chegarmos aqui.
Paulo sempre foi visto pelo Cristianismo antigo e histórico como fiel
apóstolo de Cristo, responsável pela interpretação e sintetização do
que a vida e obra de Cristo representam. Há uma continuação direta entre
o conceito de Reino pregado por Jesus e aquele da justificação pela fé
defendido por Paulo, conceito este que, especialmente debaixo da
influência da experiência de conversão de Lutero, foi considerado na
Reforma como o centro da teologia de Paulo.
Debaixo da influência do pietismo pós-reforma, no entanto, o centro
da teologia de Paulo passou a ser entendido como o processo de salvação
individual e santificação. O centro deslocou-se do aspecto forênsico
(justificação) para aspectos mais pneumáticos e éticos da pregação Paulina. Com a chegada do racionalismo nos estudos neotestamentários no
século XVII, surgiram diferentes interpretações de Paulo por parte de
várias escolas alemãs de estudos bíblicos. F. C. Baür e a Escola de
Tübingen entenderam que o centro do pensamento de Paulo não era sua
cristologia, mas sua pneumatologia. Em particular, na antítese entre o espírito e a carne. Essa antítese era entendida em termos hegelianos, como se referindo à
antítese entre o absoluto e infinito (espírito) e o finito (carne).
Paulo teria desenvolvido essa antítese em reação ao cristianismo
judaico. Baür conseguiu estabelecer firmemente nos círculos acadêmicos
modernos a ideia de que Paulo desenvolveu sua teologia em separado de
Jesus e dos demais apóstolos.
Esse pensamento foi fortalecido pela obra de outro teólogo liberal
alemão, Wilhelm Wrede, para quem a essência do pensamento de Paulo é a
doutrina de Cristo e a sua obra – redenção em escala cósmica. Paulo
teria tornado os fatos redentivos (encarnação, morte e ressurreição) em
fundamento da religião. Portanto, a história da redenção seria o pilar
fundamental do cristianismo Paulino. A única maneira plausível pela qual
Paulo poderia ter tomado a figura do Jesus histórico e a transformado
no Cristo Paulino é se ele já tivesse em sua formação e mente alguns
conceitos pré-definidos sobre um ser divino (o mito do redentor cósmico
das religiões de mistério), que ele então teria transferido para o Jesus
histórico debaixo do impacto da ressurreição (que para Wrede não foi
literal). Como resultado, Wrede aprofunda ainda mais a separação entre
Paulo e Jesus.
Depois dele, os estudiosos voltaram-se para o fenômeno das religiões
populares da época de Paulo, no helenismo, em busca das fontes e origens
de seu pensamento. Focalizaram-se especialmente no sincretismo
religioso daquela época, que era o resultado da invasão das religiões
orientais de mistério na cultura grega. Bousset, um dos estudiosos mais
destacados desse período, explicou o Cristo de Paulo como uma
reinterpretação mística do Cristo escatológico da igreja palestina
primitiva. Para ele, Paulo havia "recauchutado" o conceito e gerado a ideia do Kurios pneumático, sob a influência do cristianismo
helenista (que já existia antes dele) e das religiões de mistério. Ou
seja, Paulo teria se afastado completamente do evangelho judaico pregado
por Jesus e criado uma religião helenística.
Algumas tentativas foram feitas para encontrar a matriz do pensamento
de Paulo no gnosticismo. Reitzenstein apelou para a literatura
Hermética, que reflete uma religião influenciada pelo Judaísmo,
religiões egípcias e orientais. Reitzenstein acreditava que Paulo havia
sido profundamente influenciado por esse tipo de gnosticismo helenista,
pois ele usava muitas palavras similares, como psikukos , pneumatikos , gnosis , agnosia , potizein , etc. Para ele, Paulo foi o maior de todos os gnósticos. Sua tese deixou marcas profundas nos estudos paulinos.
Estas teses do antigo liberalismo alemão sobre a origem do pensamento
de Paulo estão hoje largamente desacreditadas nos meios acadêmicos da
Europa e Estados Unidos, de onde vem grande parte da teologia que
desembarca aqui no Brasil. Os estudiosos mais e mais perceberam de que a
estrutura do pensamento de Paulo não é a cristologia pneumática que ele
teria elaborado. A matriz do pensamento de Paulo não está no helenismo,
mas na revelação histórica de Cristo na plenitude dos tempos, o
cumprimento cristocêntrico das promessas feitas a Israel. Vide a obra
gigantesca de Herman Ridderbos, neste sentido.
Entretanto, alguém precisa dizer aos Galileus, Isto é, Épocas e Superinteressantes
da vida que estas teses que sempre levantam são de uma fase dos estudos
neotestamentários já superada. São apenas matérias sensacionalistas.
Paulo nunca traiu Jesus. Ele não é o autor do Cristianismo e nem criou
uma forma de Cristianismo que fosse diferente em essência daquela
preconizada no Antigo Testamento e estabelecida por Jesus Cristo. É
lamentável constatar que a teologia brasileira está sendo feita não por
teólogos responsáveis, mas por jornalistas incultos, despreparados e
desatualizados.
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(*) É paraibano e pastor presbiteriano. É bacharel em teologia pelo
Seminário Presbiteriano do Norte (Recife), mestre em Novo Testamento
pela Universidade Reformada de Potchefstroom (África do Sul) e doutor em
Interpretação Bíblica pelo Westminster Theological Seminary (EUA), com
estudos no Seminário Reformado de Kampen (Holanda). Foi professor e
diretor do Seminário Presbiteriano do Norte (1985-1991), professor de
exegese do Seminário JMC em São Paulo, professor de Novo Testamento do
Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper (1995-2001), pastor
da Primeira Igreja Presbiteriana do Recife (1989-1991) e pastor da
Igreja Evangélica Suiça de São Paulo (1995-2001). Atualmente é chanceler
da Universidade Presbiteriana Mackenzie e pastor auxiliar da Igreja
Presbiteriana de Santo Amaro. É autor de vários livros, entre eles O que você precisa saber sobre batalha espiritual (CEP), O culto espíritual (CEP), A Bíblia e Sua Familia (CEP) e A Bíblia e Seus Intérpretes (CEP).