A TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO E O PROTESTANTISMO
BRASILEIRO
Faço questão de publicar esta matéria aqui no meu blog, por falar de um homem que deu sua vida inteira para ver mudada a ênfase do evangelho na triste realidade do povo latino-americano. Eu estou falando de Richard Shaull, mestre de Rubem Alves. Não que eu concorde com todas as ideias de Shaull, principalmente aquelas que têm a ver com o marxismo, mas pela sua entrega, dedicação, postura e seu espírito de luta.
Millard
Richard Shaull nasceu na Pensilvânia em 24 de novembro de 1919, durante a I
Guerra Mundial. Originário de uma família presbiteriana piedosa, camponeses
conservadores, estudou Sociologia numa instituição de tradição anabatista,
Igreja dos Irmãos, o Elizabethtown College. Aí, sofreria a influência dos
reformadores radicais, como Thomaz
Münzer.
Como os
menonitas, os Irmãos levavam os problemas sociais, as questões de justiça e paz
aos alunos. A própria Sociologia era uma ciência incipiente na qual se
acreditava pouco. Era admirável que uma instituição evangélica já se
interessasse por ela. Já envolvido com os estudos teológicos, em Princeton,
Shaull conheceria o pensamento do teólogo da Universidade de Praga, Josep Luki Hromadka, profundamente
envolvido com as questões da Igreja na Europa, especialmente no nazismo
incipiente, discutindo as grandes questões e compromissos com o Reino de Deus.
Politicamente, Shaull interessava-se pelo socialismo
cristão de Hromadka. Esse teólogo, que chegara a receber o Prêmio Lênin da
Paz, do governo russo, deplorou a honraria quando seu próprio país foi
invadido. Foi o fundador da Conferência Cristã pela Paz, em 1958, e foi
extremamente atuante no acontecimento histórico denominado “A Primavera de
Praga”, em 1968. É notável como Hromadka buscava a paz diferentemente do que
era senso comum, a “pax americana”, um mundo sem grandes guerras.
John Mackay, o reitor que retirou Princeton do
fundamentalismo teológico que dominara o notável seminário desde o início do
século XX, tem muito a ver com o interesse de Shaull pela América Latina.
Esteve aqui, antes, como missionário presbiteriano, e conhecia nossas
carências, além do predomínio teológico
profundamente conservador. O vigoroso missionário da teologia dialética de Karl Barth, influenciou-o sobre as
questões da igreja latina, especialmente o protestantismo ecumênico que
impressionava muito o jovem estudante de Teologia (a publicação princetoniana The
Fundamentals representava o pensamento dos teólogos presbiterianos do Fundamentalismo.
Eram os mais importantes da época Benjamin
Warfield, os irmãos Hodge, Cyrus Scoffield, John Machen, que dominaram Princeton por quatro décadas). A partir
do fim da década de 30, Shaull, como estudante, toma contato com a teologia
reformada e protestante originária da Europa, com K. Barth, R. Bultman, E. Brunner, Hromadka.
A
extraordinária revista Theology Today,
fundada em 1944, representaria a reversão do domínio fundamentalista em Princeton.
Richard e Reinhold Niebuhr marcariam sua influência na teologia presbiteriana,
a partir de suas cátedras no Union Seminary de Nova Iorque, com profundas e
interessantes incursões na Antropologia Teológica. O enfoque começa a mudar o bibliocentrismo
teológico no sentido da ênfase cristológica barthiana (Karl Barth, Dogmática da
Igreja), e pouco depois a teologia política que inspirou a resistência da
Igreja ao nazismo, e a profundidade de E.
Brunner, que estava ensinando nos EUA, fugindo do nacional socialismo de
Hitler.
Dizer que
não havia fundamentalismo na Europa, a partir desses fatos, é romantismo. Como
se entenderia um protestantismo tão envolvido institucionalmente com o Estado
nazista? Um colchete caberia aqui, para uma citação de uma obra de Dietrich Bonhoeffer, Ética. Esta obra
surgiu em meio à II Guerra Mundial, inconclusa, editada anos depois de sua morte,
quando tudo desmoronava no mundo ocidental. Experimentava-se a decadência do
protestantismo, e com ele a ética cristã, calcada em valores abstratos. A
pergunta é esta: de onde virá a libertação? E Bonhoeffer responderia: “apenas
alguém preso a Deus se sabe chamado para a ação obediente e
responsável.” Diria mais, que em Cristo não se realiza uma ideia abstrata
de amor. O cristão é colocado no meio do mundo e seus dilemas, seu agir
responsável o identifica nas situações concretas, como a idolatria da morte.
Emil Brunner, teólogo suíço contemporâneo de
Dietrich Bonhoefer, que ensinara na América e terminara a vida como mártir
cristão enforcado como prisioneiro político na Alemanha, foi responsável pela
“conversão” de Shaull à humanidade de Jesus de Nazaré. Albert Shweitzer oferece os fundamentos para a segunda fase da
pesquisa do Jesus Histórico: Jesus de Nazaré é um Jesus escatológico, mas condicionado
pelo apocalipsismo profético do judaísmo formativo; não é um Jesus convincente,
moderno, doutrinário, como o da Teologia
Liberal do século XIX, e depois dela, a Teologia Existencial de Bultmann, nesse caso, escandalosa, pois
desmonta a mitologia sobre as questões do cristianismo primitivo.
O Cristo
demitizado não confere com o Cristo da religião neotestamentária, sua imagem
historiográfica não se conforma com o Jesus da história. Para Bultmann,
portanto, estamos reduzidos a uma interpretação da história de Jesus sob o
ponto de vista da sua relevância para a fé, o Cristo do querigma faz
presente a salvação, aqui e agora, existencialmente, na vida de cada um que o
aceita. Só em 1953 se daria a oportunidade de superação dessa concepção. Ernst Käseman, contestando a concepção
existencial pura da pessoa de Cristo em Bultmann, na afirmação de que a
história de Jesus “é importante para a fé, tão somente.” Esse Jesus “nos
fala a partir de realidades constatadas aqui,” diria Käseman, e não num mundo
ideal, celestial, espiritualizado.
Wolfhart Pannenberg o acompanha. Fala de uma ação de
Deus na história humana. Também não é suficiente afastar os conteúdos
religiosos da história da fé cristã primitiva, e experimentarmos uma conversão
existencial ao Cristo do Novo Testamento, mas inseridos histórica e
presencialmente. Sua luta se manifesta em tudo que identifica a paz, ação,
reversão do sofrimento e da opressão. Essa luta é comandada daqui, e não do
céu. O querigma não ficou no passado, há continuidade histórica, no
sentido de que o querigma primitivo pressupõe com antecedência a
presença do Jesus Histórico como antecedente obrigatório.
Também o
contato com estudantes europeus, africanos, asiáticos amplia seu horizonte.
Lutando com estes questionamentos, nascia um esboço para uma teologia
revolucionária de transformação da sociedade que tornavam o teólogo ainda mais
inquieto. Shaull volta aos Estados Unidos em 1950 para aprofundar seus estudos
no Union Seminary de Nova Iorque,
onde lecionaria Paul Tillich, vindo
de Chicago. Shaull começa a estudar o marxismo. Não lhe faltavam elementos para
contextualizar sua experiência na Colômbia. Os problemas de saúde, como
resultado de sua atuação na igreja colombiana, atrapalhavam, inicialmente, a
necessária recuperação para retornar à Colômbia, providencialmente. Decidiu-se
por um programa de doutoramento no Union Seminary justamente com a orientação
do importante teólogo presbiteriano Reinhold
Niebuhr, que ajudou-o a aprofundar sua reflexão teológica, a partir do
estudo da teologia de Karl Barth,
especialmente.
Mas, foi
aí que tomou contato também com Paul
Lehmann. Este, sim, proporcionou os meios para a grande síntese do
pensamento político-teológico de Shaull na direção da Teologia da Libertação (A
Ética em um Contexto Cristão, um trabalho insuperável. Ética da Koinonia, com afirmações
instigantes e perguntas como “o que Deus está fazendo para tornar mais
humana a vida do homem”?).
O MOVIMENTO IGREJA E
SOCIEDADE NASCEU AQUI, NA LATINO-AMÉRICA
Poucos
teólogos conheciam o marxismo tão bem. Lehman exerceu profunda influência sobre
Shaull, como destacou Galasso Faria em sua biografia do teólogo revolucionário
(Fé e Compromisso, ASTE, 2002). O próprio Shaull reconhece isso (Encounter
with Revolution and the Struggle – Encontro com a revolução e a luta):
“Lehman me possibilitou tomar tudo que havia aprendido em Princeton acerca da
graciosa iniciativa de Deus agindo para redimir a vida humana e trazer
reconciliação ao mundo, situando-se firmemente dentro do processo histórico.
Isto me preparou para voltar à América Latina.” Depois de cumprir seu tempo na
Colômbia (1942-1951), Shaull foi encaminhado para o Chile pela Junta de Missões
de Nova Iorque para o trabalho com universitários, mas houve uma mudança.
Acabou vindo para o Brasil para fazer o mesmo trabalho. Nesse tempo, algumas
coisas importantes já estavam marcando sua presença importante na teologia
latino-americana.
Poucos
anos depois, a recém-criada Confederação
Evangélica do Brasil forma o Departamento
de Igreja e Sociedade (1955), abrindo a discussão no ambiente evangélico
para as questões sociais e políticas no Brasil. Em 1960 realizou-se um encontro
reunindo 8 países estrangeiros, patrocinado pelo CMI, em S. Bernardo do Campo, S.P.
Participavam economistas, sociólogos, teólogos, analisando aspectos fundamentais
da realidade social. Shaull tratou do assunto “Vocação da Igreja na Evolução Política de um Povo”. O documento da
Conferência Internacional de Estúdios Ecumênicos, da Conferência de
Tessalônica, Grécia, em julho de 1959, já circulava com o título “Dilemas y
Oportunidades – La Acción Cristiana em los Rápidos Câmbios Sociales”.
Suas palavras eram cuidadosas: “O cristão deve estar envolvido nos
esforços de um povo para desenvolver a sua nacionalidade, porém, livre
de preocupações ideológicas”. Na verdade, seu cuidado estava em evitar que
a revolução cubana, 1959, entrasse na pauta de discussões, inviabilizando o
principal motivo da convocação: “O cristão participa do processo
revolucionário, mas compreende que a única revolução profunda que se
opera no homem e na sociedade vem através de Jesus Cristo”.
Em 1962,
ano do fracasso do intervencionismo norte-americano em Cuba, e época das Ligas
Camponesas de Francisco Julião, a famosa Conferência do Nordeste era a mais
incisiva, dentro da temática da teologia que interessava aos latinos, em
fermentação. Seu tema “Cristo e o
Processo Revolucionário
Brasileiro” marcou o ponto culminante da Teologia da Revolução, tendo Shaull como expoente. Waldo César, que dela participou, escreveu
sobre a mesma: “O movimento Igreja e
Sociedade superou, de certa
forma, o nível teológico, ideológico e institucional em que se movia, timidamente, o protestantismo brasileiro.
Foi, portanto, um rompimento. O compromisso
da fé tinha uma nova referência, criava um vocabulário novo, outra leitura da Bíblia – e da realidade
social na qual vivíamos, mais como vítimas do que participantes. O projeto Igreja e Sociedade foi uma
forma de inserção na conjuntura
nacional e a revelação das contradições do protestantismo no país, das coisas velhas e novas que se produziam nas
igrejas e na cultura brasileira”.
O CMI
assistia e a ISAL (Igreja e Sociedade na América Latina) se projetava. Em
Huampani, em Lima, Peru, 1961, os evangélicos de todo o Continente estavam
reunidos, preocupados com a “Iglesia en las Profundas Transformaciones
Sociales”, título de um livro resultante desse encontro, de Van Lewen, mais
tarde. Mais importante, porém, foi o documento tornado livro, AMÉRICA HOY:
“Acción de Dios y Responsabilidad Del Hombre”. As questões apontavam
para a temática essencial: “A revolução social é também a revolução
da Igreja”. Em El Tabo, Chile,
meados de 1965, Shaull será expulso do Brasil nessa época, a II Consulta
Latino-Americana de Igreja e Sociedade prossegue o trabalho da ISAL. O campo de
projetos ecumênicos estava consolidado, uma corrente teológica com o nome
provisório de Teologia da Revolução,
pela primeira vez na história da igreja latino-americana, referente
especificamente ao Continente, e demonstra como o ecumenismo de iniciativa
protestante, predominante até os dias atuais, influiu no olhar sobre a
exploração cultural e econômica e seu poder no esmagamento das populações do
terceiro mundo, especialmente no lado de baixo do Equador.
Richard
Shaull avaliava, nesta altura, a razão por que sua teologia não se generalizava
no meio evangélico. Luteranos pareciam interessar-se por suas matrizes
européias; metodistas reagiam com violência, fechando a escola de Rudge Ramos,
em S. Paulo; presbiterianos isolavam e depois suspendiam as atividades do
Seminário do Centenário, reduto acadêmico de Shaull; o fundamentalismo
recrudescia em toda parte, no Brasil; a Confederação Evangélica sofria
intervenção da ditadura militar, através de evangélicos comprometidos com o
autoritarismo político-religioso da época; teólogos e sociólogos envolvidos com
sua Teologia da Revolução eram
presos; políticos cristãos eram cassados, presos, torturados e mortos. Enfim, o
“fracasso”(!) da Teologia da Revolução entre os protestantes era acentuado com
a entrada dos teólogos católicos latino-americanos emulados pelo novo catolicismo
a partir do Concílio Vaticano II, concluído em 1965, e da encíclica Gaudium
et Spes. O encontro episcopal dos bispos latino-americanos em Medellín, em
1968, consagrava uma teologia católica, muito engajada, dentro do processo
revolucionário, mas pouquíssimo interessada no ecumenismo protestante do
Continente, na época, marcadamente deficiente e pouco influente (o CLAI –
Conselho Latino-Americano de Igrejas) surgiria somente duas décadas depois. Lutando
contra o integrismo, fundamentalismo católico, preferia-se atacar o gigante que
estava dentro da sua própria casa.
TEÓLOGOS CATÓLICOS IGNORAM A
TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO NA REFORMA
Foi a vez
da Teologia da Libertação, que
infelizmente, julgamos, pensava teológica e tão somente na igreja de Roma. Para
fazer sua reforma, os teólogos católicos imaginavam uma desvinculação com a
reforma de Lutero e Calvino. E Roma, por sua vez, temia uma nova reforma na
igreja. Hans Küng diria que era o intento integrista de sufocar os resultados reformadores
do Concílio Vaticano II. Talvez isso explique o (eqüi) distanciamento do
movimento ecumênico coordenado pelo CMI. O integrismo não se cansa de mostrar seu
anti-ecumenismo dominante, ainda hoje (cf. Dominus Iesus), apesar da
maioria francamente aberta do clero e do laicato brasileiros, satisfeitos,
então, com as posições notáveis da CNBB em favor do ecumenismo.
Os redutos
católicos seriam fortalecidos com a adesão de teólogos protestantes com mais
liberdade ecumênica, em razão de seus compromissos institucionais fora do
Brasil, estudavam na Alemanha, na Suíça, na França, tais e quais os católicos.
São muitos os exemplos. Breno Shumann,
destacadamente, recentemente lembrado e homenageado com a publicação de um
livro com artigos seus e depoimentos de protestantes contemporâneos, como Zwinglio M. Dias, Carlos Cunha, Walter Altmann,
Waldo César, Jether Ramalho, e
outros dessa época, pela Escola Superior de Teologia da IECLB (Irreverência,
Compromisso e Liberdade, Koinonia/IECLB), trabalhava na Editora Vozes ao lado
de Leonardo Boff, antes que a explosão da teologia católica adotasse o conceito
que veio a chamar-se Teologia da Libertação.
Além de
tudo, o nome “revolução” passa a ser adotado por governos militares golpistas,
anti-democráticos, de direita, contaminando uma identificação de nítidas
conotações marxistas. Além de tudo, o constrangimento institucional alijava os
teólogos protestantes do ponto principal a ser atacado. Sempre foram mais úteis
no campo da teologia bíblica, dispensados da discussão principal. O bloco de
teólogos católicos da libertação, então, estava em todo o mundo, com uma
unidade teológica impressionante. Muito diferente do que acontecia com os
teólogos políticos do protestantismo na América Latina. Suas frentes de
trabalho contra a exploração religiosa, o recuo eclesiástico depois do avanço
de João XXIII, o descaso da Igreja para com as situações desumanas na América
Latina, se confundem com a luta contra o capitalismo internacional. Não havia
uma percepção de que a igreja protestante merecia o mesmo conceito. De fato, a Teologia
da Libertação quer uma “reforma católica” antes que uma frente ecumênica para
atacar os problemas do Terceiro Mundo.
Não há
lugar para Shaull na Teologia da
Libertação, do ponto de vista ecumênico, o que praticamente se definiu em
1973, na famosa Conferência de Genebra, onde estavam também os reformados, como
Jürgen Moltman. Liderados por Juan Luis Segundo e Gustavo Gutiérrez, a recusa do princípio
protestante da Reforma, base teológica em Lutero e Calvino (da qual os
católicos pouco sabiam e os protestantes que dele não abriam mão) definiu a
dispensa dos teólogos protestantes do bloco da Teologia da Libertação. Pouco
interesse havia pela insistência de Shaull nos conteúdos transformadores da
Reforma, especialmente os doutrinários procedentes das questões sobre os
princípios “sola gratia,” “sola fide” e “sola scriptura.”
A polêmica
da paternidade do nome se incendeia. Se havia o combate ao racionalismo
escolástico e tomista, Calvino e Lutero, como Tomás de Aquino, mereceriam a
mesma atenção. [Nota: Leonardo Boff destoa dos colegas católicos, no
entanto. Escrevendo na Revista Latino-americana de Teologia, jan./abril 1984, (“Lutero
entre la Reforma y la Liberación”), disse: “Lutero provocou um enorme processo
de libertação. Ele será sempre um ponto de referência obrigatório para todos os
que buscam a libertação e sabem como lutar e sofrer por ela”. Em 1991 Richard
Shaull o homenageava, enquanto editava seu livro A Reforma Protestante e a
Teologia da Libertação (Pendão Real, 1993: Tradução de Eduardo Galasso, Abival
Pires da Silveira e Gérson Correia de Lacerda). Pontos essenciais da Teologia
da Libertação são destacados neste livro: Lutero e a Libertação, A Reforma Luterana
e a Libertação Hoje, A Bíblia: Fonte de Verdade que nos Liberta, O Desafio dos
Reformadores Radicais, Rumo a uma Reforma Radical Hoje].
TEOLOGIA PARA A LIBERTAÇÃO DO
SOFRIMENTO INJUSTO DO POVO LATINO-AMERICANO
O
principal discípulo de Shaull, Rubem
Alves, que emprestou ao movimento o nome do livro que o cunhou: Teologia da
Libertação (título de sua dissertação de doutoramento em Princeton, por
editores transformada em Teologia da
Esperança Humana, ainda em 1967), que não se apoiava em J. B. Metz, o grande nome católico, e
sim em Moltman e Harvey Cox – este
mudava suas primeiras posições sobre a secularização e pós-modernidade –
expoentes protestantes da teologia política em discussão, naquele momento. A
suspeição sobre a palavra “revolução” era um impedimento, também. Mas não para
os teólogos da libertação, também acusados de concessões excessivas ao
marxismo. Para Marx e Engels, sob o capitalismo e dentro do
capitalismo a revolução se dá contra a sociedade burguesa, alcançando o estado
democrático burguês, concomitantemente. O problema é que o estado liberal é camaleônico, aproveitador de nomenclaturas, e se
diz capaz de fazer a “revolução dentro da ordem constitucional”. Um marxista
não concordaria de forma alguma, pois a classe
reacionária não se transfere para a revolucionária.
A atuação de Shaull no meio universitário deu-lhe a certeza de que a concepção marxista
prevalecia no meio estudantil. Assim era na CEB (Confederação Evangélica do
Brasil), na UCEB (União Cristã de Estudantes do Brasil), e na ISAL (Igreja e
Sociedade na América Latina), com suas preocupações cristãs de interpretar a
revolução marxista. Os estudantes cristãos com os quais Shaull dialogava
compreendiam a mensagem (Alternativa ao Desespero, Imprensa Metodista, 1955).
Exatamente nesse ano dom Hélder Câmara convocava o episcopado católico para uma
conferência geral.
Em 1962, o
dominicano Carlos Josapha chama
Richard Shaull para o debate, os fóruns denominados Brasil Urgente, que mantinham também um semanário, procuraram esse
teólogo protestante. Foi convidado para ensinar no seminário dominicano de
Brasília, o que não se concretizou porque a ditadura militar também o fechou.
Não é preciso dizer que o Seminário Presbiteriano
do Centenário, também fechado, como esse dominicano, continuou funcionando
na clandestinidade. Também a Universidade Nacional de Brasília, federal, estava
prestes a inaugurar, com sua colaboração, um centro para estudos teológicos. Mas Shaull foi expulso do Brasil. Os
levantes sociais eram causados pelo sofrimento injusto do povo, a fé deveria
conjugar seus esforços com os movimentos revolucionários que brotavam debaixo
da ditadura militar, interpretando a luta contra todas as formas de injustiça
através do testemunho da fé no Reino de Deus. O encontro da fé com a pobreza e
a opressão era expressão do compromisso cristão. Estes conceitos teológicos
gerados sob a influência de Shaull não foram esquecidos.
Rubem
Alves foi um discípulo que compreendeu Shaull como ninguém. Orientado por ele
no mestrado em Princeton, e depois por Harvey
Cox, que já abandonava a Teologia da
Secularização, aprofundou conceitos de teologia política cristalizando esse
pensamento no magnífico livro “Toward a Theology of Libertation” (Por uma
Teologia da Libertação), em 1967, em sua dissertação de doutoramento. O futuro
utópico do Reino de Deus aponta para a transformação da ordem de injustiça
vigente. Shaull já declarara que um equívoco existia na concepção que dele
tinham seus críticos, e também de muitos dos adeptos de sua teologia: “Quando
Helmut Golwitzer,
enquanto eu ensinava em Princeton, referiu-se a mim como a primeira
pessoa a tratar teologicamente a revolução, e quando fui chamado
‘teólogo da revolução’, senti que isso representava um grande equívoco
sobre quem eu era”, disse Shaull. Até porque Hélder Câmara, já em 1955, na
Conferência do Rio de Janeiro, reunindo os bispos do Brasil, já começava a
falar em ‘revolução dentro da paz’. Além do mais, um outro elemento passou a
ter mais importância em sua teologia, o que aprendera com Paul Lehmann o levara também a compreender o drama da redenção, como
reconhecimento da intervenção libertadora de Deus na história” (heilgechichte).
O marxismo
também significava a negação de certos valores humanistas muito caros, como a
responsabilidade protestante na modernidade, o calvinismo inicial, que Weber não considerou positivamente, se
não muito mais tarde (Weber teria dito que “os discípulos tendem a distorcer o pensamento de seus mestres em favor
de suas novas teses”), as liberdades individuais, coisa que os teólogos da
Teologia da Libertação desconsideraram por não pertencerem à tradição da
Reforma, em sua maioria. Mas nem assim se fazia justiça a Shaull, que também
declarara: “meu encontro com o marxismo
não estava fazendo de mim um marxista, mas um cristão melhor” (Christian
Faith and Marxism). A perspectiva profética e escatológica do marxismo, que
olha o presente à luz de um futuro novo, a utopia tão bem representada por Ernst Bloch, como uma visão de um mundo
transformado, eram muito bem assimiladas pelo grande teólogo.
Outro
aspecto do marxismo contrariava Shaull, a tendência de separar realidades
espirituais das materiais, o desprezo quase completo pela religião cristã. Nem
a religião dos profetas, o “javismo”, nem a apostólica, “o cristianismo”,
interessava aos marxistas, aparentemente. Mas a conversão de Roger Garaudy ao catolicismo, começa a
contestar o lugar comum. A substituição completa e cabal do pensamento
religioso pelo pensamento político era para Shaull uma negação de uma fé
utópica que o próprio marxismo encampara. Outra vez, o próprio E. Bloch, marxista genial, com seu
estudo magistral sobre Thomaz Münzer
e a utopia do protestantismo radical, vinha em seu socorro. Shaull percebeu a
distância que havia entre esses dois universos conceituais, e que não se
ajustavam mais à realidade e à busca de uma sociedade mais justa. Tocado pelo
inacreditável sofrimento do pobre, ao mesmo tempo sensibilizado para
transformar as estruturas crescentes de exploração, a indústria da morte,
notadamente no terceiro mundo, e cristalizada na América Latina, bem próxima,
uma vez mais se viu obrigado a reexaminar seus conceitos. Encantou-se com as comunidades
eclesiais de base, as CEBs, que representavam na realidade social o que a
Teologia da Libertação pregava.
Desde o
início, Rubem Alves, discípulo de
Richard Shaull, que teve o seu livro Towards a Theology of Liberation publicado
pela Corpus Books, Washington, 1969, discutia a linguagem da Teologia da
Esperança – fazia uma crítica à linguagem da teologia contemporânea européia,
estudada em Barth, Bultmann e Moltmann. A crítica visava demonstrar como a linguagem
teológica até então estivera sempre voltada para realidades metafísicas e meta-históricas, e assinalava o nascimento
de novas comunidades de cristãos, animados por uma visão e por uma paixão pela libertação
humana, e cuja linguagem teológica se tornava linguagem histórica. Também a
linguagem da “teologia da esperança”, se bem que funcionasse como um corretivo
com relação à teologia dialética e existencial, continuava ainda “tangencial à
história.”
A teologia da libertação fez questão logo
de diferenciar-se da chamada Teologia da Revolução, que
encontrava sua primeira formulação no contexto da conferência sobre “Igreja e
Sociedade” do Conselho Mundial de Igrejas (CMI) em Genebra em 1966. Era a
retomada, em uma nova situação política mundial, de um tema já anunciado, no
início do século, pelo teólogo batista norte-americano do Social Gospel, Walter Rauschenbusch, que já em sua
primeira obra Christianiaty and the Social Crisis (1907)
escrevia: “A ascética cristã disse que o mundo era mau e o abandonou. A
humanidade está à espera de uma revolução cristã que diga que o mundo é mau,
mas trate de modificá-lo”; e de teólogos suíços do socialismo religioso como Hermann Kutter e Leonhard Ragaz, do mesmo período. Em Genebra, o tema da revolução
foi introduzido no debate ecumênico pelo teólogo norte-americano, com vasta
experiência nos problemas da América Latina, especialmente na Colômbia e no
Brasil, Richard Shaull, que não pretendia desenvolver uma teologia sistemática
da revolução, como alguns pensaram, mas apresentar o problema da relação entre
vocação cristã e participação dos cristãos na luta revolucionária. Para Shaull,
a vocação cristã pode alimentar uma autêntica vocação revolucionária, entre
outras vocações. Rubem Alves, no texto inédito publicado pela REDES, do IFTAV
(Instituto de Filosofia e Teologia da Arquidiocese de Vitória - EES), em
fevereiro deste ano, dissertação elaborada sob a orientação de Shaull, ainda no
início da década de 60, talvez lance luz sobre o assunto.
O debate
sobre a relação entre cristianismo e revolução era enriquecido com a
contribuição de teólogos europeus como Helmut
Gollwitzer, que vinculava o conceito de revolução ao de Reino de Deus: “o
‘Reino de Deus’ é o conteúdo de uma promessa que revoluciona o presente”; e
Jürgen Moltmann, que unia o tema escatológico da esperança, que descortina os horizontes
do futuro, com o tema apocalíptico da “ruptura” com o passado, e assim vai-se
ao encontro do futuro, “rompendo” com o passado. De fato, “os símbolos e as
imagens bíblicas sublinham a descontinuidade, a condenação, o fim do
mundo e a irrupção de algo absolutamente novo.” Hugo Assmann logo observava que semelhante teologia “geral” da revolução
se torna genérica, abstrata, porque rodeia o tema, trata de problemas
teológicos contextuais (Reino de Deus, apocalíptica) e “fica vagando longe dos
fatos.”
Johann Baptist Metz, entre 1965-1968, já elaborava um
programa de Teologia Política que
logo reunirá também outros teólogos, entre os quais o próprio Moltmann, que pretendia dessa forma dar
concretude à sua teologia da esperança. A teologia latino-americana da
libertação e a teologia política européia convergem naquela que pode ser
definida como a reviravolta política da
teologia nos anos 60, mas trata-se de duas figuras teológicas diferentes
sob vários aspectos. Antes de mais nada, são duas teologias praticamente
contemporâneas: a Teologia Política origina-se diretamente da conferência de
Metz no congresso de Toronto no verão de 1967; e a Teologia da Libertação, como
já vimos, do relatório de Gustavo Gutiérrez no encontro pastoral de Chimbote no
verão de 1968, mas nascidas em contextos diferentes; não se pode, pois, derivar
a teologia da libertação da teologia política, considerando a primeira como uma
forma latino-americana de teologia política, como o fizeram apressadas
análises, não somente na Europa, mas também na América Latina.
Além
disso, estas duas teologias entraram em tensão desde o começo, como ocorreu na
áspera discussão do Simpósio de Genebra de 1973 organizado pelo Conselho
Mundial de Igrejas e com a polêmica Carta aberta de 1975 de Jürgen
Moltmann ao teólogo argentino José
Miguez Bonino, autor de Fazer teologia em uma situação revolucionária (1975).
Gutiérrez aprofundou a já mencionada intuição metodológica do ensaio Práxis
de libertação, teologia e anúncio (1975) em outros ensaios
recolhidos na parte IV de A força histórica dos pobres (1979), onde
aborda expressamente o tema do confronto entre teologia da libertação e teologia
progressista européia, da qual a teologia política é a ponta mais avançada.
Trata-se de duas teologias profundamente diferentes, pois se movem em
horizontes e contextos diferentes e procuram enfrentar desafios diversos: enquanto
a teologia progressista está atenta aos desafios da racionalidade crítica e da liberdade
individual no contexto de uma sociedade forjada pela burguesia, a teologia da
libertação tem como interlocutores os ausentes da história, que na América
Latina estão se tornando o sujeito histórico de um processo de libertação
popular e isso implica um questionamento da ordem social, econômica, política
que os oprime e os marginaliza, e certamente também da ideologia que pretende
justificar esta dominação (Gustavo Gutiérrez). O teólogo peruano recrimina a
teologia européia, mesmo a progressista que procura encarregar-se dos problemas
postos pela modernidade, por não questionar as bases históricas concretas sobre
as quais o mundo moderno se constituiu. Não lhe foi possível separar os
momentos históricos que envolviam as teologias protestante e católica.
No que diz
respeito à teologia progressista do “mundo adulto” de Bonhoeffer, eis o que
escreve Gutiérrez: “Mas, se Bonhoeffer
às vezes notou o inimigo fascista que atacava a sociedade liberal pelas costas,
ele foi menos sensível ao mundo de injustiça sobre o qual essa sociedade concretamente
se apoiava.” A diferença entre as duas teologias depende, em última análise, de
uma ruptura política: “Os setores sociais explorados, as raças desprezadas, as
culturas marginalizadas são o sujeito histórico de uma nova compreensão da fé”.
A profunda análise metodológica de Teologia e prática (1978), de Clodovis Boff, identificou os elementos
estruturais do discurso da Teologia da Libertação, deixando claro que sua peculiaridade
epistemológica residia na assunção da mediação sócio analítica.
Essa
mediação é necessária para interpretar o real, que, no caso da relação entre
teoria e práxis, é o social. Mas a mediação sócio-analítica pode ser ignorada
ou assumida de maneira incorreta: o “teologismo” a ignora, na medida em que
substitui a mediação sócio-analítica pela teologia, à qual delega a função de
dizer tudo, como se a teologia pudesse pronunciar-se a respeito de tudo sem a
mediação das ciências; o “bilingüismo”, ao invés, assume a mediação
sócio-analítica, mas sem articulá-la no discurso teológico.
Na análise
de Clodovis Boff, a teologia
política praticaria uma espécie de “bilinguismo”, que faz duas leituras
“sinóticas” do real, chegando a fórmulas vagas do tipo “a fé implica a
política”; “o Evangelho tem também uma dimensão política”; “a Igreja tem
inclusive uma missão de caráter social”, em que a mediação sócio-analítica não
deixa de ser assumida, mas é apenas justaposta ao dado teológico, sem uma
articulação propriamente dita, capaz de condicionar a mediação hermenêutica e a
mediação prático pastoral; um “bilinguismo” que às vezes se configura também
como “mistura semântica” de dois gêneros linguísticos, o sociológico e o teológico’.
Poucos sabem que o diálogo cultural, sócio-analítico, como Clodovis Boff
considera, antropológico, latino, como método da teologia voltada para a
história de opressão da América Latina, vinha sendo desenvolvida por teólogos
que acompanhavam Shaull, especialmente no presbiterianismo brasileiro, onde um
seminário inovava. O Seminário do Centenário
foi fundado em 1959 e fechado pela ditadura em 1968, passando à clandestinidade
(Richard Shaull, Joaquim Beato, Claude E. Labrunie, e outros, foram seus fundadores,
na qualidade de ex-aluno, homenageio-os nessa memória). Não poderíamos esquecer
Breno Shumann, Rubem Alves, Jether
Ramalho, Waldo César, que contribuíram enormemente para o funcionamento e
revolução no ensino teológico desta instituição onde estudei, e dali ordenado
pastor na Igreja Batista.
As
dificuldades políticas e eclesiásticas, em que pouco a pouco se envolveu a
Teologia da Libertação, fizeram que a tensão e a polêmica inicial entre teologia
política e teologia da libertação se transformassem em um confronto
construtivo, logo iniciado, entre posições diferentes, onde a diferença se deve
em última análise a uma “ruptura política” (Teologia da Libertação, Gustavo
Gutiérrez, 1971), à diversidade do “lugar social” (Clodovis Boff) em que atuam,
de um lado, os teólogos políticos, europeus e norte-americanos e, de outro, os
teólogos latino-americanos.
Recolhido
ao ambiente acadêmico, lecionando em Princeton, e afastado do ecumenismo
proposto pelo CMI, voltado na década de 80 para as questões do mundo que
preparava-se para a globalização, dito pós-moderno, ingenuamente envolvido com
o desarmamento e tentativas de interpretar uma possível guerra nuclear em
caminho, logo depois, empolgado pela “queda do muro de Berlim”, a
“Perestroika”, “Glasnost”, Shaull começava a se interessar novamente pela
América Latina, ciente de que nem mesmo a modernidade se realizara aqui, quanto
mais o que se pretendia colocar como uma teologia para a pós-modernidade, como
já escrevia Henrique Dussel. Além do
mais, a secularização não fazia sentido, aqui. Uma religiosidade explosiva se
manifestava, permeada por espiritualidades orientais, movimentos religiosos
brotando, como o Movimento Carismático, o Neopentecostalismo. Nenhuma teologia
interpretava bem, ou dava acolhida a estes movimentos. Shaull, no entanto,
observava o pentecostalismo a partir de sua presença na Universidade Bíblica de
Costa Rica, onde teólogos de profundo preparo e receptivos às teologias
políticas (Bernardo Campos, por exemplo) iniciavam e introduziam estudos de grande
importância para uma consciência de transformação social.
A
MASSA OPRIMIDA CLAMA PELA TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO E DO ESPÍRITO
Seu
penúltimo livro, em parceria com o discípulo de várias décadas, o sociólogo
Waldo César, “Pentecostalismo e Futuro das
Igrejas Cristãs”, apresentado como uma pesquisa interdisciplinar concluída
em 1997, traz algumas conclusões incríveis. Uma delas é que a Teologia da
Libertação representa uma boa resposta para os pobres e oprimidos abaixo do
Equador, e os pentecostais constituem a grande massa evangélica a quem
interessa uma proposta teológica com fundamento bíblico capaz de alimentar sua ansiedade
pelo Reino de Deus. Outra, mais que visível, refere-se ao fracasso das igrejas
históricas em aproximarem-se da grande massa de pobres e oprimidos. Quando
muito, desenvolveram um conjunto voltado para a comunhão ecumênica, aí com um
grande sucesso, porque o catolicismo brasileiro, inédito em relação aos outros
catolicismos latinos e mundiais, também se envolveu com o institucionalismo e
na unidade visível, em um conselho igualitário brasileiro (Conic) diretamente envolvido
com o ecumenismo mundial (CMI). Enquanto isso, “seu” pentecostalismo está
voltado para atender às ideologias da classe média. “Acredito que o
pentecostalismo, inclusive o neopentecostalismo, se espera desenvolver
uma ética de liberdade solidamente firmada nas Escrituras, precisará dar
muito mais atenção ao que acontece na comunidade pentecostal,
expressivamente composta pelos pobres e oprimidos do sistema”, declarava
no último curso que aplicava, em Vitória, Brasil, poucos meses antes do seu
falecimento. Alguns dos principais problemas do pentecostalismo estão na
influência que recebe do fundamentalismo reinante também nas igrejas
históricas: o moralismo evangelical e fundamentalista.
Acrescentaríamos o “renascimento cristão” e seu apocalipsismo biblicamente
deformado. Diria Shaull: “O pentecostalismo corre riscos de deixar-se
dominar pela cultura materialista e egocêntrica que caracteriza o
protestantismo latino-americano, tornando-se, como se percebe nas
igrejas históricas, adepto fervoroso e entusiasta do mundo neoliberal e
globalizado”. A descoberta e o acento para a vida no Espírito, o
reconhecimento dos “dons da graça”, porém, são prenúncios da possibilidade
de uma nova ética de liberdade que desafiará o fundamentalismo e o
conservadorismo imobilista do protestantismo tradicional.
Seu
interesse pelas CEBs continua, cita-as como exemplo bem-sucedido da Teologia da
Libertação aplicada à vida em comunhão. Os pobres são preferenciais para Deus,
o Reino e a sua justiça alcançam as políticas públicas e sociais. Contudo,
“somente pela renovação de nossa fé e a vida no Espírito estaremos em condições
de nos envolver com os pentecostais em uma reflexão ecumênica da qual todos
poderemos aproveitar” (Pentecostalismo e
o futuro das igrejas cristãs, Vozes/Sinodal, 1a. Edição, p.253). As
comunidades pentecostais livres e independentes representam uma tendência de
juntar os pobres para uma vida em comunidade aberta para resolver ou procurar
soluções para os problemas sociais que se cristalizam nas periferias,
justamente onde se experimentam as propostas do Evangelho do Reino de Deus com
mais intensidade.“Minha imersão no pentecostalismo foi uma
experiência importante no meio de uma gente que tem uma fé compulsiva,
tão cheia de sentido que determina uma vida cheia de sentido, que
determina sua vida e destino”, dizia ainda em seu livro.
Se
considerarmos que Richard Shaull, morrendo na véspera de completar seus 83 anos
de idade, depois de anos combatendo uma enfermidade implacável que não o
impediu totalmente de trabalhar, viveu instantes de espiritualidade que
consignariam uma reversão quanto à sua luta contra a tendência da teologia
protestante de rejeitar ou ignorar o pentecostalismo bíblico ou histórico, não
só na América Latina, mas na América do Norte e no mundo europeu, estaremos
errados. Inteiramente. Os oprimidos por quem interessou-se a vida toda, até o
último instante, quando preparava partes do culto fúnebre que seria celebrado
ao fim de sua própria travessia, na Bryn Marl Presbyterian Church, sendo um dos
seus cinco pastores e pastoras, na chegada à terceira margem da qual Rubem
Alves gosta de falar, citando Guimarães Rosa. A luta do oprimido foi o motivo de toda a sua luta. Algo especial
aconteceu, o transcendente indescritível o tomou por completo, na convivência
com pentecostais latinos e norte-americanos.
Quando o
autor destas linhas o saudava lembrando as palavras de Paul Tillich numa releitura dos escritos daquele teólogo que também
o inspirara nos últimos tempos, Shaull acenava e balançava sua cabeça afirmativamente:
“Presença Espiritual de Deus”. Deus permanece entre os homens mesmo quando é
expulso e rejeitado, como se faz com o pobre e desvalido. Talvez, a chave para
evitar o esvaziamento da Teologia da Libertação pudesse estar aqui, uma
teologia que também seja capaz de ler os significados do Pentecostes bem da
Graça libertadora presentes na Causa do homem de Nazaré.
Breves referências bibliográficas:
A Reforma
Protestante e a Teologia da Libertação, R. Shaull, Pendão Real, 1993
Fé e
Compromisso, Eduardo Galasso Faria, ASTE, 2002
O Novo
Rosto da Missão, Luiz Longuini Neto, Ultimato, 2002
Surpreendido
pela Graça, Richard Shaull, Record, 2003
Pentecostalismo
e Futuro das Igrejas Cristãs, Vozes/Sinodal, 1999
A Teologia
do Século XX, Rosino Ganbellini, Loyola, 1998