sábado, 15 de julho de 2017

A TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO E O PROTESTANTISMO BRASILEIRO

A TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO E O PROTESTANTISMO BRASILEIRO


Faço questão de publicar esta matéria aqui no meu blog, por falar de um homem que deu sua vida inteira para ver mudada a ênfase do evangelho na triste realidade do povo latino-americano. Eu estou falando de Richard Shaull, mestre de Rubem Alves. Não que eu concorde com todas as ideias de Shaull, principalmente aquelas que têm a ver com o marxismo, mas pela sua entrega, dedicação, postura e seu espírito de luta.  

Millard Richard Shaull nasceu na Pensilvânia em 24 de novembro de 1919, durante a I Guerra Mundial. Originário de uma família presbiteriana piedosa, camponeses conservadores, estudou Sociologia numa instituição de tradição anabatista, Igreja dos Irmãos, o Elizabethtown College. Aí, sofreria a influência dos reformadores radicais, como Thomaz Münzer.

Como os menonitas, os Irmãos levavam os problemas sociais, as questões de justiça e paz aos alunos. A própria Sociologia era uma ciência incipiente na qual se acreditava pouco. Era admirável que uma instituição evangélica já se interessasse por ela. Já envolvido com os estudos teológicos, em Princeton, Shaull conheceria o pensamento do teólogo da Universidade de Praga, Josep Luki Hromadka, profundamente envolvido com as questões da Igreja na Europa, especialmente no nazismo incipiente, discutindo as grandes questões e compromissos com o Reino de Deus. Politicamente, Shaull interessava-se pelo socialismo cristão de Hromadka. Esse teólogo, que chegara a receber o Prêmio Lênin da Paz, do governo russo, deplorou a honraria quando seu próprio país foi invadido. Foi o fundador da Conferência Cristã pela Paz, em 1958, e foi extremamente atuante no acontecimento histórico denominado “A Primavera de Praga”, em 1968. É notável como Hromadka buscava a paz diferentemente do que era senso comum, a “pax americana”, um mundo sem grandes guerras.

John Mackay, o reitor que retirou Princeton do fundamentalismo teológico que dominara o notável seminário desde o início do século XX, tem muito a ver com o interesse de Shaull pela América Latina. Esteve aqui, antes, como missionário presbiteriano, e conhecia nossas carências, além do predomínio teológico profundamente conservador. O vigoroso missionário da teologia dialética de Karl Barth, influenciou-o sobre as questões da igreja latina, especialmente o protestantismo ecumênico que impressionava muito o jovem estudante de Teologia (a publicação princetoniana The Fundamentals representava o pensamento dos teólogos presbiterianos do Fundamentalismo. Eram os mais importantes da época Benjamin Warfield, os irmãos Hodge, Cyrus Scoffield, John Machen, que dominaram Princeton por quatro décadas). A partir do fim da década de 30, Shaull, como estudante, toma contato com a teologia reformada e protestante originária da Europa, com K. Barth, R. Bultman, E. Brunner, Hromadka.

A extraordinária revista Theology Today, fundada em 1944, representaria a reversão do domínio fundamentalista em Princeton. Richard e Reinhold Niebuhr marcariam sua influência na teologia presbiteriana, a partir de suas cátedras no Union Seminary de Nova Iorque, com profundas e interessantes incursões na Antropologia Teológica. O enfoque começa a mudar o bibliocentrismo teológico no sentido da ênfase cristológica barthiana (Karl Barth, Dogmática da Igreja), e pouco depois a teologia política que inspirou a resistência da Igreja ao nazismo, e a profundidade de E. Brunner, que estava ensinando nos EUA, fugindo do nacional socialismo de Hitler.

Dizer que não havia fundamentalismo na Europa, a partir desses fatos, é romantismo. Como se entenderia um protestantismo tão envolvido institucionalmente com o Estado nazista? Um colchete caberia aqui, para uma citação de uma obra de Dietrich Bonhoeffer, Ética. Esta obra surgiu em meio à II Guerra Mundial, inconclusa, editada anos depois de sua morte, quando tudo desmoronava no mundo ocidental. Experimentava-se a decadência do protestantismo, e com ele a ética cristã, calcada em valores abstratos. A pergunta é esta: de onde virá a libertação? E Bonhoeffer responderia: “apenas alguém preso a Deus se sabe chamado para a ação obediente e responsável.” Diria mais, que em Cristo não se realiza uma ideia abstrata de amor. O cristão é colocado no meio do mundo e seus dilemas, seu agir responsável o identifica nas situações concretas, como a idolatria da morte.

Emil Brunner, teólogo suíço contemporâneo de Dietrich Bonhoefer, que ensinara na América e terminara a vida como mártir cristão enforcado como prisioneiro político na Alemanha, foi responsável pela “conversão” de Shaull à humanidade de Jesus de Nazaré. Albert Shweitzer oferece os fundamentos para a segunda fase da pesquisa do Jesus Histórico: Jesus de Nazaré é um Jesus escatológico, mas condicionado pelo apocalipsismo profético do judaísmo formativo; não é um Jesus convincente, moderno, doutrinário, como o da Teologia Liberal do século XIX, e depois dela, a Teologia Existencial de Bultmann, nesse caso, escandalosa, pois desmonta a mitologia sobre as questões do cristianismo primitivo.

O Cristo demitizado não confere com o Cristo da religião neotestamentária, sua imagem historiográfica não se conforma com o Jesus da história. Para Bultmann, portanto, estamos reduzidos a uma interpretação da história de Jesus sob o ponto de vista da sua relevância para a fé, o Cristo do querigma faz presente a salvação, aqui e agora, existencialmente, na vida de cada um que o aceita. Só em 1953 se daria a oportunidade de superação dessa concepção. Ernst Käseman, contestando a concepção existencial pura da pessoa de Cristo em Bultmann, na afirmação de que a história de Jesus “é importante para a fé, tão somente.” Esse Jesus “nos fala a partir de realidades constatadas aqui,” diria Käseman, e não num mundo ideal, celestial, espiritualizado.

Wolfhart Pannenberg o acompanha. Fala de uma ação de Deus na história humana. Também não é suficiente afastar os conteúdos religiosos da história da fé cristã primitiva, e experimentarmos uma conversão existencial ao Cristo do Novo Testamento, mas inseridos histórica e presencialmente. Sua luta se manifesta em tudo que identifica a paz, ação, reversão do sofrimento e da opressão. Essa luta é comandada daqui, e não do céu. O querigma não ficou no passado, há continuidade histórica, no sentido de que o querigma primitivo pressupõe com antecedência a presença do Jesus Histórico como antecedente obrigatório.

Também o contato com estudantes europeus, africanos, asiáticos amplia seu horizonte. Lutando com estes questionamentos, nascia um esboço para uma teologia revolucionária de transformação da sociedade que tornavam o teólogo ainda mais inquieto. Shaull volta aos Estados Unidos em 1950 para aprofundar seus estudos no Union Seminary de Nova Iorque, onde lecionaria Paul Tillich, vindo de Chicago. Shaull começa a estudar o marxismo. Não lhe faltavam elementos para contextualizar sua experiência na Colômbia. Os problemas de saúde, como resultado de sua atuação na igreja colombiana, atrapalhavam, inicialmente, a necessária recuperação para retornar à Colômbia, providencialmente. Decidiu-se por um programa de doutoramento no Union Seminary justamente com a orientação do importante teólogo presbiteriano Reinhold Niebuhr, que ajudou-o a aprofundar sua reflexão teológica, a partir do estudo da teologia de Karl Barth, especialmente.

Mas, foi aí que tomou contato também com Paul Lehmann. Este, sim, proporcionou os meios para a grande síntese do pensamento político-teológico de Shaull na direção da Teologia da Libertação (A Ética em um Contexto Cristão, um trabalho insuperável. Ética da Koinonia, com afirmações instigantes e perguntas como “o que Deus está fazendo para tornar mais humana a vida do homem”?).

O MOVIMENTO IGREJA E SOCIEDADE NASCEU AQUI, NA LATINO-AMÉRICA

Poucos teólogos conheciam o marxismo tão bem. Lehman exerceu profunda influência sobre Shaull, como destacou Galasso Faria em sua biografia do teólogo revolucionário (Fé e Compromisso, ASTE, 2002). O próprio Shaull reconhece isso (Encounter with Revolution and the Struggle – Encontro com a revolução e a luta): “Lehman me possibilitou tomar tudo que havia aprendido em Princeton acerca da graciosa iniciativa de Deus agindo para redimir a vida humana e trazer reconciliação ao mundo, situando-se firmemente dentro do processo histórico. Isto me preparou para voltar à América Latina.” Depois de cumprir seu tempo na Colômbia (1942-1951), Shaull foi encaminhado para o Chile pela Junta de Missões de Nova Iorque para o trabalho com universitários, mas houve uma mudança. Acabou vindo para o Brasil para fazer o mesmo trabalho. Nesse tempo, algumas coisas importantes já estavam marcando sua presença importante na teologia latino-americana.

Poucos anos depois, a recém-criada Confederação Evangélica do Brasil forma o Departamento de Igreja e Sociedade (1955), abrindo a discussão no ambiente evangélico para as questões sociais e políticas no Brasil. Em 1960 realizou-se um encontro reunindo 8 países estrangeiros, patrocinado pelo CMI, em S. Bernardo do Campo, S.P. Participavam economistas, sociólogos, teólogos, analisando aspectos fundamentais da realidade social. Shaull tratou do assunto “Vocação da Igreja na Evolução Política de um Povo”. O documento da Conferência Internacional de Estúdios Ecumênicos, da Conferência de Tessalônica, Grécia, em julho de 1959, já circulava com o título “Dilemas y Oportunidades – La Acción Cristiana em los Rápidos Câmbios Sociales”. Suas palavras eram cuidadosas: “O cristão deve estar envolvido nos esforços de um povo para desenvolver a sua nacionalidade, porém, livre de preocupações ideológicas”. Na verdade, seu cuidado estava em evitar que a revolução cubana, 1959, entrasse na pauta de discussões, inviabilizando o principal motivo da convocação: “O cristão participa do processo revolucionário, mas compreende que a única revolução profunda que se opera no homem e na sociedade vem através de Jesus Cristo”.

Em 1962, ano do fracasso do intervencionismo norte-americano em Cuba, e época das Ligas Camponesas de Francisco Julião, a famosa Conferência do Nordeste era a mais incisiva, dentro da temática da teologia que interessava aos latinos, em fermentação. Seu tema “Cristo e o Processo Revolucionário Brasileiro” marcou o ponto culminante da Teologia da Revolução, tendo Shaull como expoente. Waldo César, que dela participou, escreveu sobre a mesma: “O movimento Igreja e Sociedade superou, de certa forma, o nível teológico, ideológico e institucional em que se movia, timidamente, o protestantismo brasileiro. Foi, portanto, um rompimento. O compromisso da fé tinha uma nova referência, criava um vocabulário novo, outra leitura da Bíblia – e da realidade social na qual vivíamos, mais como vítimas do que participantes. O projeto Igreja e Sociedade foi uma forma de inserção na conjuntura nacional e a revelação das contradições do protestantismo no país, das coisas velhas e novas que se produziam nas igrejas e na cultura brasileira”.

O CMI assistia e a ISAL (Igreja e Sociedade na América Latina) se projetava. Em Huampani, em Lima, Peru, 1961, os evangélicos de todo o Continente estavam reunidos, preocupados com a “Iglesia en las Profundas Transformaciones Sociales”, título de um livro resultante desse encontro, de Van Lewen, mais tarde. Mais importante, porém, foi o documento tornado livro, AMÉRICA HOY: “Acción de Dios y Responsabilidad Del Hombre”. As questões apontavam para a temática essencial: “A revolução social é também a revolução da Igreja”. Em El Tabo, Chile, meados de 1965, Shaull será expulso do Brasil nessa época, a II Consulta Latino-Americana de Igreja e Sociedade prossegue o trabalho da ISAL. O campo de projetos ecumênicos estava consolidado, uma corrente teológica com o nome provisório de Teologia da Revolução, pela primeira vez na história da igreja latino-americana, referente especificamente ao Continente, e demonstra como o ecumenismo de iniciativa protestante, predominante até os dias atuais, influiu no olhar sobre a exploração cultural e econômica e seu poder no esmagamento das populações do terceiro mundo, especialmente no lado de baixo do Equador.

Richard Shaull avaliava, nesta altura, a razão por que sua teologia não se generalizava no meio evangélico. Luteranos pareciam interessar-se por suas matrizes européias; metodistas reagiam com violência, fechando a escola de Rudge Ramos, em S. Paulo; presbiterianos isolavam e depois suspendiam as atividades do Seminário do Centenário, reduto acadêmico de Shaull; o fundamentalismo recrudescia em toda parte, no Brasil; a Confederação Evangélica sofria intervenção da ditadura militar, através de evangélicos comprometidos com o autoritarismo político-religioso da época; teólogos e sociólogos envolvidos com sua Teologia da Revolução eram presos; políticos cristãos eram cassados, presos, torturados e mortos. Enfim, o “fracasso”(!) da Teologia da Revolução entre os protestantes era acentuado com a entrada dos teólogos católicos latino-americanos emulados pelo novo catolicismo a partir do Concílio Vaticano II, concluído em 1965, e da encíclica Gaudium et Spes. O encontro episcopal dos bispos latino-americanos em Medellín, em 1968, consagrava uma teologia católica, muito engajada, dentro do processo revolucionário, mas pouquíssimo interessada no ecumenismo protestante do Continente, na época, marcadamente deficiente e pouco influente (o CLAI – Conselho Latino-Americano de Igrejas) surgiria somente duas décadas depois. Lutando contra o integrismo, fundamentalismo católico, preferia-se atacar o gigante que estava dentro da sua própria casa.

TEÓLOGOS CATÓLICOS IGNORAM A TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO NA REFORMA

Foi a vez da Teologia da Libertação, que infelizmente, julgamos, pensava teológica e tão somente na igreja de Roma. Para fazer sua reforma, os teólogos católicos imaginavam uma desvinculação com a reforma de Lutero e Calvino. E Roma, por sua vez, temia uma nova reforma na igreja. Hans Küng diria que era o intento integrista de sufocar os resultados reformadores do Concílio Vaticano II. Talvez isso explique o (eqüi) distanciamento do movimento ecumênico coordenado pelo CMI.  O integrismo não se cansa de mostrar seu anti-ecumenismo dominante, ainda hoje (cf. Dominus Iesus), apesar da maioria francamente aberta do clero e do laicato brasileiros, satisfeitos, então, com as posições notáveis da CNBB em favor do ecumenismo.

Os redutos católicos seriam fortalecidos com a adesão de teólogos protestantes com mais liberdade ecumênica, em razão de seus compromissos institucionais fora do Brasil, estudavam na Alemanha, na Suíça, na França, tais e quais os católicos. São muitos os exemplos. Breno Shumann, destacadamente, recentemente lembrado e homenageado com a publicação de um livro com artigos seus e depoimentos de protestantes contemporâneos, como Zwinglio M. Dias, Carlos Cunha, Walter Altmann, Waldo César, Jether Ramalho, e outros dessa época, pela Escola Superior de Teologia da IECLB (Irreverência, Compromisso e Liberdade, Koinonia/IECLB), trabalhava na Editora Vozes ao lado de Leonardo Boff, antes que a explosão da teologia católica adotasse o conceito que veio a chamar-se Teologia da Libertação.

Além de tudo, o nome “revolução” passa a ser adotado por governos militares golpistas, anti-democráticos, de direita, contaminando uma identificação de nítidas conotações marxistas. Além de tudo, o constrangimento institucional alijava os teólogos protestantes do ponto principal a ser atacado. Sempre foram mais úteis no campo da teologia bíblica, dispensados da discussão principal. O bloco de teólogos católicos da libertação, então, estava em todo o mundo, com uma unidade teológica impressionante. Muito diferente do que acontecia com os teólogos políticos do protestantismo na América Latina. Suas frentes de trabalho contra a exploração religiosa, o recuo eclesiástico depois do avanço de João XXIII, o descaso da Igreja para com as situações desumanas na América Latina, se confundem com a luta contra o capitalismo internacional. Não havia uma percepção de que a igreja protestante merecia o mesmo conceito. De fato, a Teologia da Libertação quer uma “reforma católica” antes que uma frente ecumênica para atacar os problemas do Terceiro Mundo.

Não há lugar para Shaull na Teologia da Libertação, do ponto de vista ecumênico, o que praticamente se definiu em 1973, na famosa Conferência de Genebra, onde estavam também os reformados, como Jürgen Moltman. Liderados por Juan Luis Segundo e Gustavo Gutiérrez, a recusa do princípio protestante da Reforma, base teológica em Lutero e Calvino (da qual os católicos pouco sabiam e os protestantes que dele não abriam mão) definiu a dispensa dos teólogos protestantes do bloco da Teologia da Libertação. Pouco interesse havia pela insistência de Shaull nos conteúdos transformadores da Reforma, especialmente os doutrinários procedentes das questões sobre os princípios “sola gratia,” “sola fide” e “sola scriptura.”

A polêmica da paternidade do nome se incendeia. Se havia o combate ao racionalismo escolástico e tomista, Calvino e Lutero, como Tomás de Aquino, mereceriam a mesma atenção. [Nota: Leonardo Boff destoa dos colegas católicos, no entanto. Escrevendo na Revista Latino-americana de Teologia, jan./abril 1984, (“Lutero entre la Reforma y la Liberación”), disse: “Lutero provocou um enorme processo de libertação. Ele será sempre um ponto de referência obrigatório para todos os que buscam a libertação e sabem como lutar e sofrer por ela”. Em 1991 Richard Shaull o homenageava, enquanto editava seu livro A Reforma Protestante e a Teologia da Libertação (Pendão Real, 1993: Tradução de Eduardo Galasso, Abival Pires da Silveira e Gérson Correia de Lacerda). Pontos essenciais da Teologia da Libertação são destacados neste livro: Lutero e a Libertação, A Reforma Luterana e a Libertação Hoje, A Bíblia: Fonte de Verdade que nos Liberta, O Desafio dos Reformadores Radicais, Rumo a uma Reforma Radical Hoje].

TEOLOGIA PARA A LIBERTAÇÃO DO SOFRIMENTO INJUSTO DO POVO LATINO-AMERICANO

O principal discípulo de Shaull, Rubem Alves, que emprestou ao movimento o nome do livro que o cunhou: Teologia da Libertação (título de sua dissertação de doutoramento em Princeton, por editores transformada em Teologia da Esperança Humana, ainda em 1967), que não se apoiava em J. B. Metz, o grande nome católico, e sim em Moltman e Harvey Cox – este mudava suas primeiras posições sobre a secularização e pós-modernidade – expoentes protestantes da teologia política em discussão, naquele momento. A suspeição sobre a palavra “revolução” era um impedimento, também. Mas não para os teólogos da libertação, também acusados de concessões excessivas ao marxismo. Para Marx e Engels, sob o capitalismo e dentro do capitalismo a revolução se dá contra a sociedade burguesa, alcançando o estado democrático burguês, concomitantemente. O problema é que o estado liberal é camaleônico, aproveitador de nomenclaturas, e se diz capaz de fazer a “revolução dentro da ordem constitucional”. Um marxista não concordaria de forma alguma, pois a classe reacionária não se transfere para a revolucionária. A atuação de Shaull no meio universitário deu-lhe a certeza de que a concepção marxista prevalecia no meio estudantil. Assim era na CEB (Confederação Evangélica do Brasil), na UCEB (União Cristã de Estudantes do Brasil), e na ISAL (Igreja e Sociedade na América Latina), com suas preocupações cristãs de interpretar a revolução marxista. Os estudantes cristãos com os quais Shaull dialogava compreendiam a mensagem (Alternativa ao Desespero, Imprensa Metodista, 1955). Exatamente nesse ano dom Hélder Câmara convocava o episcopado católico para uma conferência geral.

Em 1962, o dominicano Carlos Josapha chama Richard Shaull para o debate, os fóruns denominados Brasil Urgente, que mantinham também um semanário, procuraram esse teólogo protestante. Foi convidado para ensinar no seminário dominicano de Brasília, o que não se concretizou porque a ditadura militar também o fechou. Não é preciso dizer que o Seminário Presbiteriano do Centenário, também fechado, como esse dominicano, continuou funcionando na clandestinidade. Também a Universidade Nacional de Brasília, federal, estava prestes a inaugurar, com sua colaboração, um centro para estudos teológicos. Mas Shaull foi expulso do Brasil. Os levantes sociais eram causados pelo sofrimento injusto do povo, a fé deveria conjugar seus esforços com os movimentos revolucionários que brotavam debaixo da ditadura militar, interpretando a luta contra todas as formas de injustiça através do testemunho da fé no Reino de Deus. O encontro da fé com a pobreza e a opressão era expressão do compromisso cristão. Estes conceitos teológicos gerados sob a influência de Shaull não foram esquecidos.

Rubem Alves foi um discípulo que compreendeu Shaull como ninguém. Orientado por ele no mestrado em Princeton, e depois por Harvey Cox, que já abandonava a Teologia da Secularização, aprofundou conceitos de teologia política cristalizando esse pensamento no magnífico livro “Toward a Theology of Libertation” (Por uma Teologia da Libertação), em 1967, em sua dissertação de doutoramento. O futuro utópico do Reino de Deus aponta para a transformação da ordem de injustiça vigente. Shaull já declarara que um equívoco existia na concepção que dele tinham seus críticos, e também de muitos dos adeptos de sua teologia: “Quando Helmut Golwitzer, enquanto eu ensinava em Princeton, referiu-se a mim como a primeira pessoa a tratar teologicamente a revolução, e quando fui chamado ‘teólogo da revolução’, senti que isso representava um grande equívoco sobre quem eu era”, disse Shaull. Até porque Hélder Câmara, já em 1955, na Conferência do Rio de Janeiro, reunindo os bispos do Brasil, já começava a falar em ‘revolução dentro da paz’. Além do mais, um outro elemento passou a ter mais importância em sua teologia, o que aprendera com Paul Lehmann o levara também a compreender o drama da redenção, como reconhecimento da intervenção libertadora de Deus na história” (heilgechichte).

O marxismo também significava a negação de certos valores humanistas muito caros, como a responsabilidade protestante na modernidade, o calvinismo inicial, que Weber não considerou positivamente, se não muito mais tarde (Weber teria dito que “os discípulos tendem a distorcer o pensamento de seus mestres em favor de suas novas teses”), as liberdades individuais, coisa que os teólogos da Teologia da Libertação desconsideraram por não pertencerem à tradição da Reforma, em sua maioria. Mas nem assim se fazia justiça a Shaull, que também declarara: “meu encontro com o marxismo não estava fazendo de mim um marxista, mas um cristão melhor” (Christian Faith and Marxism). A perspectiva profética e escatológica do marxismo, que olha o presente à luz de um futuro novo, a utopia tão bem representada por Ernst Bloch, como uma visão de um mundo transformado, eram muito bem assimiladas pelo grande teólogo.

Outro aspecto do marxismo contrariava Shaull, a tendência de separar realidades espirituais das materiais, o desprezo quase completo pela religião cristã. Nem a religião dos profetas, o “javismo”, nem a apostólica, “o cristianismo”, interessava aos marxistas, aparentemente. Mas a conversão de Roger Garaudy ao catolicismo, começa a contestar o lugar comum. A substituição completa e cabal do pensamento religioso pelo pensamento político era para Shaull uma negação de uma fé utópica que o próprio marxismo encampara. Outra vez, o próprio E. Bloch, marxista genial, com seu estudo magistral sobre Thomaz Münzer e a utopia do protestantismo radical, vinha em seu socorro. Shaull percebeu a distância que havia entre esses dois universos conceituais, e que não se ajustavam mais à realidade e à busca de uma sociedade mais justa. Tocado pelo inacreditável sofrimento do pobre, ao mesmo tempo sensibilizado para transformar as estruturas crescentes de exploração, a indústria da morte, notadamente no terceiro mundo, e cristalizada na América Latina, bem próxima, uma vez mais se viu obrigado a reexaminar seus conceitos. Encantou-se com as comunidades eclesiais de base, as CEBs, que representavam na realidade social o que a Teologia da Libertação pregava.

Desde o início, Rubem Alves, discípulo de Richard Shaull, que teve o seu livro Towards a Theology of Liberation publicado pela Corpus Books, Washington, 1969, discutia a linguagem da Teologia da Esperança – fazia uma crítica à linguagem da teologia contemporânea européia, estudada em Barth, Bultmann e Moltmann. A crítica visava demonstrar como a linguagem teológica até então estivera sempre voltada para realidades metafísicas e meta-históricas, e assinalava o nascimento de novas comunidades de cristãos, animados por uma visão e por uma paixão pela libertação humana, e cuja linguagem teológica se tornava linguagem histórica. Também a linguagem da “teologia da esperança”, se bem que funcionasse como um corretivo com relação à teologia dialética e existencial, continuava ainda “tangencial à história.”

A teologia da libertação fez questão logo de diferenciar-se da chamada Teologia da Revolução, que encontrava sua primeira formulação no contexto da conferência sobre “Igreja e Sociedade” do Conselho Mundial de Igrejas (CMI) em Genebra em 1966. Era a retomada, em uma nova situação política mundial, de um tema já anunciado, no início do século, pelo teólogo batista norte-americano do Social Gospel, Walter Rauschenbusch, que já em sua primeira obra Christianiaty and the Social Crisis (1907) escrevia: “A ascética cristã disse que o mundo era mau e o abandonou. A humanidade está à espera de uma revolução cristã que diga que o mundo é mau, mas trate de modificá-lo”; e de teólogos suíços do socialismo religioso como Hermann Kutter e Leonhard Ragaz, do mesmo período. Em Genebra, o tema da revolução foi introduzido no debate ecumênico pelo teólogo norte-americano, com vasta experiência nos problemas da América Latina, especialmente na Colômbia e no Brasil, Richard Shaull, que não pretendia desenvolver uma teologia sistemática da revolução, como alguns pensaram, mas apresentar o problema da relação entre vocação cristã e participação dos cristãos na luta revolucionária. Para Shaull, a vocação cristã pode alimentar uma autêntica vocação revolucionária, entre outras vocações. Rubem Alves, no texto inédito publicado pela REDES, do IFTAV (Instituto de Filosofia e Teologia da Arquidiocese de Vitória - EES), em fevereiro deste ano, dissertação elaborada sob a orientação de Shaull, ainda no início da década de 60, talvez lance luz sobre o assunto.

O debate sobre a relação entre cristianismo e revolução era enriquecido com a contribuição de teólogos europeus como Helmut Gollwitzer, que vinculava o conceito de revolução ao de Reino de Deus: “o ‘Reino de Deus’ é o conteúdo de uma promessa que revoluciona o presente”; e Jürgen Moltmann, que unia o tema escatológico da esperança, que descortina os horizontes do futuro, com o tema apocalíptico da “ruptura” com o passado, e assim vai-se ao encontro do futuro, “rompendo” com o passado. De fato, “os símbolos e as imagens bíblicas sublinham a descontinuidade, a condenação, o fim do mundo e a irrupção de algo absolutamente novo.” Hugo Assmann logo observava que semelhante teologia “geral” da revolução se torna genérica, abstrata, porque rodeia o tema, trata de problemas teológicos contextuais (Reino de Deus, apocalíptica) e “fica vagando longe dos fatos.”

Johann Baptist Metz, entre 1965-1968, já elaborava um programa de Teologia Política que logo reunirá também outros teólogos, entre os quais o próprio Moltmann, que pretendia dessa forma dar concretude à sua teologia da esperança. A teologia latino-americana da libertação e a teologia política européia convergem naquela que pode ser definida como a reviravolta política da teologia nos anos 60, mas trata-se de duas figuras teológicas diferentes sob vários aspectos. Antes de mais nada, são duas teologias praticamente contemporâneas: a Teologia Política origina-se diretamente da conferência de Metz no congresso de Toronto no verão de 1967; e a Teologia da Libertação, como já vimos, do relatório de Gustavo Gutiérrez no encontro pastoral de Chimbote no verão de 1968, mas nascidas em contextos diferentes; não se pode, pois, derivar a teologia da libertação da teologia política, considerando a primeira como uma forma latino-americana de teologia política, como o fizeram apressadas análises, não somente na Europa, mas também na América Latina.

Além disso, estas duas teologias entraram em tensão desde o começo, como ocorreu na áspera discussão do Simpósio de Genebra de 1973 organizado pelo Conselho Mundial de Igrejas e com a polêmica Carta aberta de 1975 de Jürgen Moltmann ao teólogo argentino José Miguez Bonino, autor de Fazer teologia em uma situação revolucionária (1975). Gutiérrez aprofundou a já mencionada intuição metodológica do ensaio Práxis de libertação, teologia e anúncio (1975) em outros ensaios recolhidos na parte IV de A força histórica dos pobres (1979), onde aborda expressamente o tema do confronto entre teologia da libertação e teologia progressista européia, da qual a teologia política é a ponta mais avançada. Trata-se de duas teologias profundamente diferentes, pois se movem em horizontes e contextos diferentes e procuram enfrentar desafios diversos: enquanto a teologia progressista está atenta aos desafios da racionalidade crítica e da liberdade individual no contexto de uma sociedade forjada pela burguesia, a teologia da libertação tem como interlocutores os ausentes da história, que na América Latina estão se tornando o sujeito histórico de um processo de libertação popular e isso implica um questionamento da ordem social, econômica, política que os oprime e os marginaliza, e certamente também da ideologia que pretende justificar esta dominação (Gustavo Gutiérrez). O teólogo peruano recrimina a teologia européia, mesmo a progressista que procura encarregar-se dos problemas postos pela modernidade, por não questionar as bases históricas concretas sobre as quais o mundo moderno se constituiu. Não lhe foi possível separar os momentos históricos que envolviam as teologias protestante e católica.

No que diz respeito à teologia progressista do “mundo adulto” de Bonhoeffer, eis o que escreve Gutiérrez: “Mas, se Bonhoeffer às vezes notou o inimigo fascista que atacava a sociedade liberal pelas costas, ele foi menos sensível ao mundo de injustiça sobre o qual essa sociedade concretamente se apoiava.” A diferença entre as duas teologias depende, em última análise, de uma ruptura política: “Os setores sociais explorados, as raças desprezadas, as culturas marginalizadas são o sujeito histórico de uma nova compreensão da fé”. A profunda análise metodológica de Teologia e prática (1978), de Clodovis Boff, identificou os elementos estruturais do discurso da Teologia da Libertação, deixando claro que sua peculiaridade epistemológica residia na assunção da mediação sócio analítica.

Essa mediação é necessária para interpretar o real, que, no caso da relação entre teoria e práxis, é o social. Mas a mediação sócio-analítica pode ser ignorada ou assumida de maneira incorreta: o “teologismo” a ignora, na medida em que substitui a mediação sócio-analítica pela teologia, à qual delega a função de dizer tudo, como se a teologia pudesse pronunciar-se a respeito de tudo sem a mediação das ciências; o “bilingüismo”, ao invés, assume a mediação sócio-analítica, mas sem articulá-la no discurso teológico.

Na análise de Clodovis Boff, a teologia política praticaria uma espécie de “bilinguismo”, que faz duas leituras “sinóticas” do real, chegando a fórmulas vagas do tipo “a fé implica a política”; “o Evangelho tem também uma dimensão política”; “a Igreja tem inclusive uma missão de caráter social”, em que a mediação sócio-analítica não deixa de ser assumida, mas é apenas justaposta ao dado teológico, sem uma articulação propriamente dita, capaz de condicionar a mediação hermenêutica e a mediação prático pastoral; um “bilinguismo” que às vezes se configura também como “mistura semântica” de dois gêneros linguísticos, o sociológico e o teológico’. Poucos sabem que o diálogo cultural, sócio-analítico, como Clodovis Boff considera, antropológico, latino, como método da teologia voltada para a história de opressão da América Latina, vinha sendo desenvolvida por teólogos que acompanhavam Shaull, especialmente no presbiterianismo brasileiro, onde um seminário inovava. O Seminário do Centenário foi fundado em 1959 e fechado pela ditadura em 1968, passando à clandestinidade (Richard Shaull, Joaquim Beato, Claude E. Labrunie, e outros, foram seus fundadores, na qualidade de ex-aluno, homenageio-os nessa memória). Não poderíamos esquecer Breno Shumann, Rubem Alves, Jether Ramalho, Waldo César, que contribuíram enormemente para o funcionamento e revolução no ensino teológico desta instituição onde estudei, e dali ordenado pastor na Igreja Batista.

As dificuldades políticas e eclesiásticas, em que pouco a pouco se envolveu a Teologia da Libertação, fizeram que a tensão e a polêmica inicial entre teologia política e teologia da libertação se transformassem em um confronto construtivo, logo iniciado, entre posições diferentes, onde a diferença se deve em última análise a uma “ruptura política” (Teologia da Libertação, Gustavo Gutiérrez, 1971), à diversidade do “lugar social” (Clodovis Boff) em que atuam, de um lado, os teólogos políticos, europeus e norte-americanos e, de outro, os teólogos latino-americanos.

Recolhido ao ambiente acadêmico, lecionando em Princeton, e afastado do ecumenismo proposto pelo CMI, voltado na década de 80 para as questões do mundo que preparava-se para a globalização, dito pós-moderno, ingenuamente envolvido com o desarmamento e tentativas de interpretar uma possível guerra nuclear em caminho, logo depois, empolgado pela “queda do muro de Berlim”, a “Perestroika”, “Glasnost”, Shaull começava a se interessar novamente pela América Latina, ciente de que nem mesmo a modernidade se realizara aqui, quanto mais o que se pretendia colocar como uma teologia para a pós-modernidade, como já escrevia Henrique Dussel. Além do mais, a secularização não fazia sentido, aqui. Uma religiosidade explosiva se manifestava, permeada por espiritualidades orientais, movimentos religiosos brotando, como o Movimento Carismático, o Neopentecostalismo. Nenhuma teologia interpretava bem, ou dava acolhida a estes movimentos. Shaull, no entanto, observava o pentecostalismo a partir de sua presença na Universidade Bíblica de Costa Rica, onde teólogos de profundo preparo e receptivos às teologias políticas (Bernardo Campos, por exemplo) iniciavam e introduziam estudos de grande importância para uma consciência de transformação social.

A MASSA OPRIMIDA CLAMA PELA TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO E DO ESPÍRITO

Seu penúltimo livro, em parceria com o discípulo de várias décadas, o sociólogo Waldo César, “Pentecostalismo e Futuro das Igrejas Cristãs”, apresentado como uma pesquisa interdisciplinar concluída em 1997, traz algumas conclusões incríveis. Uma delas é que a Teologia da Libertação representa uma boa resposta para os pobres e oprimidos abaixo do Equador, e os pentecostais constituem a grande massa evangélica a quem interessa uma proposta teológica com fundamento bíblico capaz de alimentar sua ansiedade pelo Reino de Deus. Outra, mais que visível, refere-se ao fracasso das igrejas históricas em aproximarem-se da grande massa de pobres e oprimidos. Quando muito, desenvolveram um conjunto voltado para a comunhão ecumênica, aí com um grande sucesso, porque o catolicismo brasileiro, inédito em relação aos outros catolicismos latinos e mundiais, também se envolveu com o institucionalismo e na unidade visível, em um conselho igualitário brasileiro (Conic) diretamente envolvido com o ecumenismo mundial (CMI). Enquanto isso, “seu” pentecostalismo está voltado para atender às ideologias da classe média. “Acredito que o pentecostalismo, inclusive o neopentecostalismo, se espera desenvolver uma ética de liberdade solidamente firmada nas Escrituras, precisará dar muito mais atenção ao que acontece na comunidade pentecostal, expressivamente composta pelos pobres e oprimidos do sistema”, declarava no último curso que aplicava, em Vitória, Brasil, poucos meses antes do seu falecimento. Alguns dos principais problemas do pentecostalismo estão na influência que recebe do fundamentalismo reinante também nas igrejas históricas: o moralismo evangelical e fundamentalista. Acrescentaríamos o “renascimento cristão” e seu apocalipsismo biblicamente deformado. Diria Shaull: “O pentecostalismo corre riscos de deixar-se dominar pela cultura materialista e egocêntrica que caracteriza o protestantismo latino-americano, tornando-se, como se percebe nas igrejas históricas, adepto fervoroso e entusiasta do mundo neoliberal e globalizado”. A descoberta e o acento para a vida no Espírito, o reconhecimento dos “dons da graça”, porém, são prenúncios da possibilidade de uma nova ética de liberdade que desafiará o fundamentalismo e o conservadorismo imobilista do protestantismo tradicional.

Seu interesse pelas CEBs continua, cita-as como exemplo bem-sucedido da Teologia da Libertação aplicada à vida em comunhão. Os pobres são preferenciais para Deus, o Reino e a sua justiça alcançam as políticas públicas e sociais. Contudo, “somente pela renovação de nossa fé e a vida no Espírito estaremos em condições de nos envolver com os pentecostais em uma reflexão ecumênica da qual todos poderemos aproveitar” (Pentecostalismo e o futuro das igrejas cristãs, Vozes/Sinodal, 1a. Edição, p.253). As comunidades pentecostais livres e independentes representam uma tendência de juntar os pobres para uma vida em comunidade aberta para resolver ou procurar soluções para os problemas sociais que se cristalizam nas periferias, justamente onde se experimentam as propostas do Evangelho do Reino de Deus com mais intensidade.“Minha imersão no pentecostalismo foi uma experiência importante no meio de uma gente que tem uma fé compulsiva, tão cheia de sentido que determina uma vida cheia de sentido, que determina sua vida e destino”, dizia ainda em seu livro.

Se considerarmos que Richard Shaull, morrendo na véspera de completar seus 83 anos de idade, depois de anos combatendo uma enfermidade implacável que não o impediu totalmente de trabalhar, viveu instantes de espiritualidade que consignariam uma reversão quanto à sua luta contra a tendência da teologia protestante de rejeitar ou ignorar o pentecostalismo bíblico ou histórico, não só na América Latina, mas na América do Norte e no mundo europeu, estaremos errados. Inteiramente. Os oprimidos por quem interessou-se a vida toda, até o último instante, quando preparava partes do culto fúnebre que seria celebrado ao fim de sua própria travessia, na Bryn Marl Presbyterian Church, sendo um dos seus cinco pastores e pastoras, na chegada à terceira margem da qual Rubem Alves gosta de falar, citando Guimarães Rosa. A luta do oprimido foi o motivo de toda a sua luta. Algo especial aconteceu, o transcendente indescritível o tomou por completo, na convivência com pentecostais latinos e norte-americanos.

Quando o autor destas linhas o saudava lembrando as palavras de Paul Tillich numa releitura dos escritos daquele teólogo que também o inspirara nos últimos tempos, Shaull acenava e balançava sua cabeça afirmativamente: “Presença Espiritual de Deus”. Deus permanece entre os homens mesmo quando é expulso e rejeitado, como se faz com o pobre e desvalido. Talvez, a chave para evitar o esvaziamento da Teologia da Libertação pudesse estar aqui, uma teologia que também seja capaz de ler os significados do Pentecostes bem da Graça libertadora presentes na Causa do homem de Nazaré.

Breves referências bibliográficas:
A Reforma Protestante e a Teologia da Libertação, R. Shaull, Pendão Real, 1993
Fé e Compromisso, Eduardo Galasso Faria, ASTE, 2002
O Novo Rosto da Missão, Luiz Longuini Neto, Ultimato, 2002
Surpreendido pela Graça, Richard Shaull, Record, 2003
Pentecostalismo e Futuro das Igrejas Cristãs, Vozes/Sinodal, 1999
A Teologia do Século XX, Rosino Ganbellini, Loyola, 1998

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