A PATOLOGIZAÇÃO DO NATURAL
Texto:
Filipenses 2:5-11.
INTRODUÇÃO:
Nos memoriais dias da minha
infância pentecostal, não faltaram elementos toscos que se somaram dia após dia
às minhas experiências. Um dos que mais marcaram esta primeira fase da minha
vida cristã foi a forma como tratavam as coisas naturais, normais da vida.
Perseguia-se o mais comum do comportamento humano, rotulando-o como pudico e
atentatório à santidade. Por exemplo, o riso, uma das coisas naturais da vida,
era tratado como escárnio, desdém, zombaria, um pecado que poderia nos privar
do paraíso. Era um retorno ao século XVII, onde o riso era posto no índex de
proibições.
Parece que eu estou me vendo dentro
do carro de um missionário sueco, vindo de um culto numa casa. A alegria que
vivemos naquele culto foi tamanha que eu voltei extravasando minha felicidade
assoviando um hino. De repente, o missionário parou o carro e MANDOU eu descer
do carro. Eu não estava entendendo nada. Tive que vir caminhando uns 5
quilômetros a pé, à noite, porque o missionário se sentiu ofendido com o meu
assobio. Isso é patologização do natural.
Eram tempos – isso ainda acontece –
em que o acento da salvação recaía sobre o comportamento humano e não sobre a
morte vicária de Jesus pelo homem. Daí por que patologizava-se qualquer
manifestação de alegria, felicidade, que não fosse dentro de uma entourage
evangélica. Você não podia ser espontâneo. Tinha que vigiar seu «lado humano»
24 horas por dia. A obrigação da virtude era severíssima. Portanto, quanto mais
sisudo, sério, austero, severo, rijo, você fosse, mais você era considerado
santo.
O lado humano era completamente
desprezado, odiado, rejeitado. Buscava-se estar na dimensão espiritual o tempo
todo. Eles não deixavam que a gente fosse humana.
A consequência disso é uma
tragédia. O comportamenta- lismo toma conta do vivencial, e passa a ser
referência e não apenas um apêndice da vida. Quando temos que ser divinos o
tempo todo, por conta de injunções, estamos deixando de viver o lado mais
bonito da vida.
É como disse certa bióloga:
“Devíamos comer coisas vivas, mas nós nos acostumamos a comer coisas mortas.
Hoje, só comemos coisas mortas!”
Estamos vivendo um evangelho
baseado na morte do nosso lado humano; não fomos ensinados a viver o
humanamente humano que há em nós. Precisamos ler mais sobre a vida de Jesus nos
evangelhos, a fim de nos acostumarmos a viver mais a vida de Jesus do que a sua
morte.
Eu desejaria que você visse o filme
“O homem que viu o infinito”. É a história de um homem-gênio em
matemática. Mas por ser indiano, foi preterido pelos grandes estudiosos de
matemática de Oxford. Ele conseguia fazer cálculos matemáticos impossíveis de
serem resolvidos. Morreu de tuberculose, porque passava frio e fome, residindo
do lado de fora da universidade, onde não havia calefação.
Ele era bom no que fazia, porque
aprendeu com as metáforas da vida cotidiana. Ele era um homem tão sensível
que ele conseguia ver e calcular todos os elementos que contêm num grão de
areia.
Tornamo-nos rígidos e deuses
inumanos, porque deixamos a religião tirar de nós o lado humano. O que somos,
hoje, não sei. Mas precisávamos fazer meia volta para sermos novamente humanos
cheios de fé em Deus. Que Deus faça de nós humanos humanamente humanos.
A
TALIBANIZAÇÃO DA VIDA CRISTÃ
No livro «Caçador de pipas», de
Khaled Hosseini, Amir pergunta ao pai de seu amigo Hassan, que fora morto, por
que ele não ficou na sua cidade natal, invadida pelos talibãs? – pergunta Amir.
Ao que o pai de Hassan responde: «Eles [os talibãs] não deixam que a gente
seja humano».
Parece-me que este é o problema de
algumas denominações evangélicas, ainda hoje: elas não deixam que a gente
seja simplesmente humano. Isto porque toda religião fundamentalista é levada ao
extremo de achar-se guardiã de Deus e de seus mistérios. Com isso, viram capatazes
do divino e pessoas extremamente duras, severas, rigorosas, inclementes.
Algumas igrejas fizeram a
pior coisa que poderiam fazer com o ser humano: o desumanizaram.
Esta é uma regra fundamental que dela não podemos
nos distanciar: espiritualidade não tira de nós o nosso lado humano, mas sim
o aperfeiçoa. Conversão não retira o nosso lado humano, mas nos devolve.
Portanto, quanto mais
você se humaniza, no bom sentido da palavra, mais espiritual você se torna.
Quanto
mais você perde o seu lado humano, mas inclemente você se torna. O pior
carrasco dos outros e de si mesmo é o humano que se acha santo.
O que
faz uma igreja ser grande? Resposta: É quando os seus membros se tornam simples
seres humanos em vez de santos inacessíveis.
Quando
uma igreja se patologiza a primeira coisa que acontece é ela tornar pecaminosa
toda e qualquer expressão de espontaneidade, naturalidade. Vai de um assobio a
um riso natural. A talibanização da igreja proíbe que sejamos simplesmente
humanos.
CONCLUSÃO:
A referência teológica sobre o assunto encontra-se
na epístola paulina aos filipenses. O apóstolo diz: “... e, sendo em forma
de Deus, não teve por usurpação ser igual a Deus, mas ESVAZIOU-SE (Kenosis),
tomando a forma de servo, fazendo-se semelhante aos homens; e, achado na forma
de homem, humilhou-se a si mesmo, sendo obediente até à morte, e morte de cruz”.
O que Paulo está dizendo, em outras palavras, é que
ser divino é o que todo humano deseja. Mas o único que era/é divino e abriu mão
da sua divindade foi Jesus. Ora, convenhamos, se o Filho de Deus se tornou
humano, por que nós, meros seres humanos, queremos nos tornar divinos?
Este é o maior desastre da religião: não deixar que
as pessoas sejam simplesmente humanas.