quinta-feira, 3 de agosto de 2017

A CRISE DE CARÁTER

A CRISE DE CARÁTER
Texto: 2 Coríntios 3:1-5.


INTRODUÇÃO:

Escolhemos o tema «Caráter» devido a uma pesquisa feita sobre as instituições mais desacreditadas do país. Para nosso espanto, ficou assim a distribuição: a) polícia – 40% (os mais desacreditados); b) pastores – 33% (a segunda instituição mais desacreditada do país) e c) políticos – 27%.

Caráter pode ser definido como aquilo que caracteriza um homem, sobretudo em seu progresso espiritual; índole.

Caráter, há muito tempo, deixou de ser matéria da psicologia para ser uma questão eminentemente ética.

I. EM DISCUSSÃO: A ORIGEM DO CARÁTER.

            Sobre o caráter, a gente deve ressaltar duas coisas:

            a) o desvio de conduta e
            b) o desvio de caráter.

            A maioria dos evangélicos corrige a conduta, mas não o caráter.
           
            Exemplo 1: Alguns bebiam – conduta – deixaram de beber, mas continuam tendo problemas no caráter. Pessoas há que têm um desvio de caráter sério, conquanto tenham se consertado na conduta. Conduta tem a ver com o que eu faço; caráter com o que eu sou. Isto porque, comumente, não sou o que faço.

            Dentro das igrejas corrigimos condutas, mas não caráter. Caráter tem a ver com motivação; conduta, com prática; ou seja: o que me motiva fazer o que fiz? Ou o que faço? Essa é a pergunta ao caráter que devemos fazer. Sem essa pergunta não começamos a mexer em nosso caráter a fim de modificá-lo.

            Por exemplo: Você está dentro de um ônibus e, de repente, dois ladrões começam a assaltar o ônibus. Um dos passageiros, tomado de coragem, consegue neutralizar os ladrões. Todos no ônibus vão parabenizar o passageiro pela sua coragem. Todavia, esta foi a conduta dele que pode não revelar – e na maioria das vezes não revela – o seu caráter; por quê? Porque por n razões aquele homem pode ter feito o que fez: pode se tratar de um psicopata que não está nem aí para as pessoas que poderiam morrer por causa do seu embate com os ladrões; ele pode ter sido motivado pelo medo ou por ser uma pessoa desequilibrada.

            Este é o nosso grande problema: falamos para fora do homem e não para dentro do homem. Assim as pessoas terminam ficando ótimas “por fora”, mas horríveis por dentro: sepulcros caiados. Cuidamos do lado “estético” das pessoas, mas esquecemos do lado “ético” – o mais importante. O estético é a “forma”; o “ético” é a essência. 

Exemplo 2: Você pede a uma pessoa, aparentemente humilde, para fazer alguma coisa. Ela não faz e fica totalmente indiferente ao que você pediu para ela fazer. Você descobre, então, que aquela humildade aparente – conduta – não é verdadeira. Aquele irmão ou irmã é extremamente insubmisso(a) e orgulhoso(a). No entanto, nos cultos de “fogo” essa(e) irmã(o) entra em estado de total ebulição: ele(a) pula, fala em línguas, chora, etc. Isso é caráter que precisa ser mudado. Essa pessoa está, no mínimo, equivocada.

            Cultos emocionais não transformam caráter, mas corrigem, se muito, condutas. Para mudarmos o nosso caráter nós temos que parar para ouvir.
           
            Que Deus nos ajude a corrigir nossa conduta e mudar nosso caráter no caráter de Cristo.


II. ÉTICA INDIVIDUALISTA – DISTORÇÃO DE CARÁTER

A. Você Decide (programa global). Uma mala cheia do dinheiro achada por alguém. Este descobre que o dinheiro é destinado a um orfanato. As pessoas decidem a favor do homem que achou a mala.

B. Somos um povo confuso, dirigido por governantes eticamente confusos, eleitos por critérios e valores duvidosos, sobre os quais a igreja pouco tem podido falar porque também tem sujado os dedos no melado.

C. O homem moderno tem uma consciência de camaleão.

D. Eduardo Giannete da Fonseca, economista laureado, lançou o livro «Vícios Privados, Benefícios Públicos? A Ética na Riqueza das Nações», onde comenta que

«... se examinássemos os jornais, os artigos, os comentários de televisão, os seminários, as conferências etc., a partir de seu conteúdo, diríamos que nosso país é uma maravilha, porque tem pessoas brilhantes, que dizem coisas brilhantes».

Mas, segundo Giannete, conquanto sejamos um país de gênios em todas as áreas, há um abismo entre o desenvolvimento tecnológico e o desenvolvimento ético, que deveria acompanhá-lo.

III. PROBLEMAS ÉTICOS PROFUNDOS

A. Somos um povo eticamente confuso porque perdemos nossos referenciais.

B. O Fenômeno da Pluralidade Transformou a Sociedade Num Imenso Supermercado. Oferece-se de tudo. O sistema tem um terminal dentro de nossas casas, quase fazendo transfusão intravenosa de cosmovisão contemporânea: valores, ideias e costumes que nos são enfiados goela abaixo, sem que esbocemos um gemido.

C. A pluralidade trouxe a fragmentação e com ela uma consciência de que para tudo há opções no mercado: naturalista, vegetariano, macrobiótico, preservacionista, reciclista etc.

D. A pluralidade trouxe também o irracionalismo intimista do tipo: não pense, sinta; não entenda, usufrua; não busque, receba; não caminhe, vibre; não se esforce, relaxe; não compreenda, intua; não reaja, concorde.

Conclusão:


A cada dia que passa a crise de caráter vem aumentando no mundo. A igreja, como voz profética de Deus, precisa levantar-se no meio de tantas vozes, para ser referencial para a sociedade, sob pena deste mal que há no mundo – a falta de caráter – invadir a igreja. Aliás, isso já está acontecendo.

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Pregação feita pelo Rev. Paulo Cesar Lima


sábado, 15 de julho de 2017

A TEOLOGIA DIALÉTICA DE KARL
BARTH E SUA REVOLTA CONTRA O
LEBERALISMO TEOLÓGICO



Em 1919, um jovem pastor de uma pequenina igreja da Suíça escreveu um comentário tão radical que certo escritor disse que Karl Barth pegou uma carta escrita em grego do primeiro século e transformou em uma carta urgente para o homem do século vinte. Um teólogo católico disse que esse comentário aos Romanos foi uma revolução copernicana na teologia protestante que acabou com o predomínio do liberalismo teológico. Ele foi, de fato, uma bomba que Barth lançou no cenário teológico contemporâneo.

Diz-se da segunda versão do comentário aos Romanos, totalmente revisada e publicada em 1921, que ela foi ainda mais revolucionária que a primeira. Porém, de qualquer forma, 1919 tem sido para muitos o ponto de partida da teologia contemporânea.

A influência da obra de Karl Barth nessa nova era da teologia é enorme. Ele transformou a teologia do século vinte em teologia da crise. Foi ele quem dominou o ambiente teológico, formulou os problemas e apresentou as hipóteses de maior relevância, e desde então tem estado no centro da teologia moderna. Não há nenhuma dúvida de que o pensamento de Barth dominou o pensamento teológico do seu tempo. Ele produziu um impacto tão grande na teologia protestante, que todo teólogo do nosso século que quiser estudar teologia a sério, pode se opor à sua teologia ou acolher suas ideias, mas não pode jamais ignorá-la se quiser conhecer a situação teológica contemporânea.
O que havia nesse comentário do pastor Barth que sacudiu os alicerces teológicos do século vinte? Quais foram os princípios que Barth apresentou e que se converteram no legado de uma nova era teológica? Harvie M. Conn, aluno do Dr. Cornelius Van Til, esboça alguns princípios que emanam do comentário de Karl Barth aos Romanos e que parecem ter desempenhado o papel mais influente na formação das novas variantes teológicas. Esses princípios serão abordados nos tópicos a seguir.

A REVOLTA TEOLÓGICA CONTRA O LIBERALISMO TEOLÓGICO FOI UMA DAS MAIS NOTÓRIAS CARACTERÍSTICAS DA TEOLOGIA BARTHIANA

Barth havia aprendido teologia aos pés de dois grandes teólogos liberais, à saber: Harnack e Herrmann. O Jesus do mentor de Barth, Harnack, não era o filho de Deus único e sobrenatural, mas a encarnação do amor e dos ideais humanistas. A Bíblia do mentor de Barth, Herrman, não era a Palavra infalível de Deus, e sim um livro extraordinário, ainda que ordinário, cheio de erros e que exigia uma crítica radical para encontrar a verdade. A medida de toda a verdade era a experiência, o sentimento. A teologia desses dois mestres e também a de Barth era o idealismo teológico, caracterizado por uma profunda veia de pietismo e de preocupação pela prática da experiência religiosa cristã. Em 1919, e com muito mais força em 1921, Barth se encarregou de repudiar grande parte desse liberalismo clássico.

A primeira guerra mundial e seus horrores acabaram por soterrar o idealismo teológico liberal. A culta Alemanha, a liberal Inglaterra e a civilizada França lutavam como animais ferozes. Nesse ínterim, os mestres liberais de Barth se uniram com outros teólogos para declarar seu apoio à Alemanha, o que demonstrou que eles eram mestres de uma religião atada a uma cultura, e não a Deus. O comentário de Barth aos Romanos surgiu então como repúdio de seus antigos mestres liberais. O liberalismo fazia de Deus algo imanente ao mundo; Barth se opôs a isso e apresentou Deus como “Totalmente Outro”. O subjetivismo do liberalismo do século 19 havia colocado o homem no lugar de Deus; Barth exclamou: “Seja Deus, e não o homem!”. O liberalismo havia exaltado o uso aculturado da religião; Bart condenou a religião como o pecado máximo. O liberalismo edificou a teologia sobre a base da ética, Barth quis edificar a ética sobre a base da teologia.

O COMENTÁRIO DE 1921 DE BARTH PROPÔS UMA NOVA IDEIA DE REVELAÇÃO.

Em oposição ao antigo liberalismo, Barth enfatizou a necessidade que o homem tem da revelação, e chamou suas ideias de Teologia da Palavra de Deus. Barth, porém, insistiu na distinção entre a Bíblia e a Palavra de Deus. Este era seu legado kantiano.

Segundo Barth, pode-se ler a Bíblia sem ouvir a Palavra de Deus. A Bíblia é simplesmente um livro, mas, pelo menos, um livro através do qual nos pode chegar a Palavra de Deus. A relação entre Deus e a Bíblia é real, porém indireta. A Bíblia, diz Barth, “é a Palavra de Deus enquanto Deus fala por meio dela […] a Bíblia se transforma em palavra de Deus nesse momento”.  Para ele, até que a Bíblia se torne real para nós, até que ela nos fale da nossa situação existencial, ela não é Palavra de Deus. Esse é o conceito barthiano de revelação.

A DIALÉTICA DE BARTH, OU TEOLOGIA DO PARADOXO

O comentário de Barth também introduziu um novo método para explicar a teologia, a dialética. Esse termo ficou rapidamente associado à obra de Barth, ainda que o método tenha sido tomado por empréstimo do teólogo existencialista Soren Kierkgaard. Kierkgaard havia dito que toda afirmação teológica era paradoxal, não podendo ser sintetizada. O homem devia somente conservar ambos os elementos do paradoxo. É esse ato de sustentação do paradoxo que Kierkgaard chama de “salto de fé”.

Tal conceito influenciou muito a teologia barthiana, de maneira que quando preparava o comentário aos Romanos, Barth afirmava que “enquanto estamos na terra, não podemos fazer outra coisa em teologia a não ser utilizar o método de afirmação e contra afirmação. Não nos atrevemos a pronunciar em forma absoluta a palavra definitiva […] O paradoxo não é acidental na teologia cristã. Ele pertence, em certo sentido, ao coração do pensamento doutrinário”. A própria natureza da revelação, segundo Barth, é um paradoxo: Deus é o oculto que se revela; conhecemos a Deus e conhecemos o pecado; todo homem é escolhido e também reprovado em Cristo; o homem é justificado por Cristo, mas ainda é pecador. Certo comentarista observou que, segundo a teologia dialética de Barth, a revelação que vem de cima para o homem, ao encontrar a contradição do pecado e finitude humana, só pode ser assimilada pela mente humana como sendo um paradoxo.

O COMENTÁRIO DE BARTH VEIO REAFIRMAR A TRANSCENDÊNCIA ABSOLUTA DE DEUS

Um dos pressupostos de Barth, que também é um legado kantiano, é que Deus é sempre sujeito, nunca objeto. Deus não é simplesmente uma unidade no mundo dos fenômenos; ele é infinito e soberano, “Totalmente Outro”, e só pode ser conhecido quando nos fala. “Ele não pode ser explicado como qualquer outro objeto pode ser, apenas podemos nos dirigir a Ele […] Por esta razão, não cabe à teologia medi-lo em uma forma de pensamento direto ou unilinear”. Não podemos falar a respeito de Deus. Apenas falamos a Deus. Segundo Barth, a própria natureza de Deus exige que as afirmações que lhe dirigimos sejam revestidas de contradição: “Não podemos considerá-lo perto, a não ser que o consideremos longe”.

Sem dúvida o grande tema de Barth, em oposição declarada ao liberalismo, foi a “infinita diferença qualitativa” entre eternidade e tempo, céu e terra, Deus e o homem. Não se pode identificar Deus com nada no mundo, nem sequer com as palavras da Escritura. Deus chega ao homem como a tangente que toca o círculo, mas na realidade não o toca. Deus fala ao homem como a bomba explode na terra. Depois da explosão, tudo o que resta é uma cratera abrasada no terreno, e essa cratera é a igreja.

O COMENTÁRIO DE BARTH TAMBÉM DEMARCOU A FRONTEIRA ENTRE A HISTÓRIA E A TEOLOGIA

A teologia do século dezenove se dedicou a procurar o Jesus histórico por detrás do Cristo sobrenatural da Bíblia. Os liberais clássicos como o professor de Barth, Harnack, se dedicaram a buscar nos evangelhos – os quais eles condenavam como não-confiáveis – os fatos históricos sobre Jesus. Barth asseverou que essa busca é uma busca sem importância, pois, segundo ele, a revelação não entra na história, apenas a toca como uma tangente toca um círculo. Segundo Barth, não há nada na história sobre o que possamos basear a fé. A fé é um vazio preenchido não pela história, mas pela revelação.

Profundamente influenciado pelos conceitos de história de Kierkgaard e de Franz Overbeck, Barth dividiu a história em dois níveis: Historie e Geschichte. Ainda que ambos os termos possam ser traduzidos por história, no alemão, a conotação que essas duas palavras têm é bem diferente. Historie é a totalidade dos fatos históricos do passado, podendo ser comprovada objetivamente. Geschichte se ocupa daquilo que une essencialmente, que exige algo de mim e requer meu compromisso. Segundo Barth, a ressurreição de Jesus pertence ao âmbito de Geschichte, não de Historie. Para ele, o âmbito da Historie de nada vale para o crente. Jesus deve ser confrontado no âmbito de Geschichte.

Mais uma vez a influência do pensamento de Immanuel Kant sobre a teologia de Karl Barth, principalmente no que concerne ao mundo dos fenômenos e dos números é muito grande, podendo-se até dizer que a teologia contemporânea tem sua raiz em Konigsberg, na Prússia. Ao longo do desenvolvimento da teologia contemporânea, as ideias kantianas de fenomenal e numenal “volta e meia” reaparecem com uma nova roupagem. Alguns tomam o tema e o ampliam, porém sua influência continua sendo grande a ponto de podermos designar o século dezoito e o pensamento de Kant como protótipo da teologia contemporânea.

OBJEÇÕES À TEOLOGIA DIALÉTICA DE KARL BARTH

Há, sem dúvida, algumas críticas que se pode fazer à obra de Barth. Ele mesmo reconheceu alguns de seus excessos e poliu boa parte dos argumentos que enfatizou a princípio, e até certo ponto, pode-se dizer que ele suavizou algumas ideias mais incisivas. O que passo a expor agora, são algumas críticas que se podem fazer ao pensamento de Barth.

Em primeiro lugar, ainda que as ideias de Barth representem uma revolta contra o liberalismo clássico, suas ideias podem ser chamadas de novo liberalismo. Barth não conseguiu se livrar do ponto de vista crítico liberal das Escrituras. Por causa dos seus pressupostos liberais, Barth não aceita a inerrância da Bíblia, chegando mesmo a afirmar que toda a Bíblia é um documento humano falível e que buscar partes infalíveis nas Escrituras é “simples capricho pessoal e desobediência”. A inerrância das escrituras é uma das diferenças cruciais entre o liberalismo e o cristianismo ortodoxo, e o posicionamento de Barth nada mais é que uma opção por ficar em cima do muro.

Sua ideia de revelação, em última instância, é puramente subjetiva. Para Barth, a diferença entre a Bíblia como meramente um livro e a Bíblia como a Palavra de Deus depende exclusivamente da reação humana frente a este livro. Embora em uma atitude de revolta contra o liberalismo ele tenha exclamado: “Seja Deus e não o homem”, na prática, dentro da sua teologia dialética, o homem é entronizado no centro da experiência religiosa.

O resultado final da dialética de Barth é a destruição da verdade objetiva. Se toda comunicação histórica e toda experiência direta com Deus se encaixa em uma concepção pagã de Deus, como poderemos aproximar-nos da verdade sobre Deus? Também a sua insistência em descrever Deus como “Totalmente Outro” faz de Deus um ser indescritível. Como Deus não é um objeto no tempo e no espaço, e visto que a “inescrutabilidade e recondidez formam parte da natureza de Deus”, o homem não pode conhecê-lo diretamente, afirma ele. A questão é: se Deus é assim tão indescritível e insondável, de que maneira o homem pode conhecê-lo?

A separação que Barth faz da Historie e da Geschichte, traz à tona a problemática concernente à historicidade da obra redentora de Cristo como fundamento do cristianismo. Ela argumenta na tradição de Nietzche e Overbeck, separando o cristianismo da história, e ao fazê-lo, acaba por solapar a base do cristianismo. É claro que o propósito de Barth foi tirar do liberalismo o monopólio quanto ao método de interpretação, mas ao fazê-lo, também privou o cristianismo do seu lugar na história.

Ao que vemos, embora a teologia de Barth tenha sido responsável por uma prática religiosa em que os valores evidenciam a religiosidade do cristão, ele jamais conseguiu se libertar completamente do liberalismo teológico de seus mestres Herrmann e Harnack. Ele revoltou-se contra o liberalismo teológico, argumentou contra ele, mas não pode livrar-se de seus pressupostos. Tal como Kant, Barth confina Deus ao mundo dos números e apresenta a dialética – a teologia do paradoxo – como sendo à única teologia possível. Ele exclui a razão a priori e deixa a porta fechada à percepção humana.

Sua teologia é de suma importância para o século vinte e, de fato, quase todo o pensamento teológico moderno até a década de setenta envolverá a perspectiva de Barth. Podemos aceitar seus pressupostos ou acirrar-nos contra ele, mas nenhum teólogo de nossa época poderá jamais ignorar a teologia dialética de Karl Barth e sua influência no cenário teológico contemporâneo.

A COMPLICADA TEOLOGIA BARTHIANA

É uma teologia basicamente eclesiástica. Significa que Barth tem a pretensão de estabelecer a doutrina como sendo a casa onde reside a Palavra de Deus. A Bíblia é muito mais que apenas um registro onde está a Palavra de Deus. Ela é o depósito onde a Palavra de Deus se insere e é onde Deus se manifesta ao ser humano. É na doutrina, pela doutrina e só na doutrina. Então Barth pensa a teologia como algo positivo no sentido de que é objetivo. Se não for um conjunto de doutrinas que dê conta de Deus, de forma positiva, objetivamente para a igreja, não há outro lugar onde Deus se manifeste. Barth, como opositor da teologia liberal, assume no século XIX, sendo que a teologia liberal assume o século XIX como limite, por conta de todos os avanços e conquistas da Filosofia no século XIX. Marx, Nietzsche, Feuerbach... O homem está preso dentro da cultura. Tanto a teologia liberal como a teologia de Barth partem desse pressuposto. Mas Barth não usa o século XIX como limite; usa-o, sim, como limitador da condição humana.

O homem não pode ir a Deus, mas Deus pode ir ao homem. E para Barth Deus vem ao homem na teologia, no dogma, na doutrina. Para Barth não é nenhuma operação propriamente da igreja. A doutrina, a teologia é uma manifestação do próprio Deus. Quase que a revelação e a doutrina tornam-se uma e a mesma coisa. De modo que ele não admitia que cada igreja tivesse a mesma doutrina, porque isso denunciaria que a doutrina é uma atividade humana. A doutrina é quase revelação. Teoricamente não é a mesma coisa, mas na prática você não consegue separar a Teologia de Barth, de um lado, e a revelação de outro. Então para ele a igreja de Jesus Cristo – ele tem quase uma visão católica da igreja – é uma unidade e só tem um acesso a Deus que é por meio da doutrina objetiva. Resumindo: é uma doutrina positiva, dogmática e eclesiástica. A única forma de o homem ter acesso a Deus é através da revelação de Deus.

A TEOLOGIA BARTHIANA TEVE ALGUMA IMPORTÂNCIA NA TEOLOGIA DO SÉCULO XX, ATÉ MESMO NO PENSAMENTO ATUAL?

A rigor, se não fosse Karl Barth a teologia, como a gente conhece, tinha se desintegrado no século XX. Porque a primeira reação objetiva na Europa, em termos de Europa – nos Estados Unidos o fundamentalismo é o mesmo tipo de resposta. Com o Romantismo no século XIX, toda a plataforma continental, europeia assume que não há mais fundamento para a verdade. Daí sairão as ciências humanas: a antropologia, a sociologia, enquanto pensamento de dar resposta, as únicas possíveis, a uma sociedade secularizada. Então a teologia liberal caminha por aí. É um jeito de dialogar com essa modernidade, com apenas Jesus e não o que é metafísico.

Karl Barth, no conteúdo, quase volta à Idade Média; na retórica, no modo de argumentação, o que ele fala parece uma coisa nova, mas no fundo é um retorno à ortodoxia medieval. Daí por que a teologia barthiana ser chamada também de neo-ortodoxia. A teologia dialética de Barth é também chamada de neo-ortodoxia por conta disso. É um retorno no que havia sido, teoricamente, superado pelo século XIX. Então tudo que se fizer no século XX em teologia com base no modo como a gente a concebe, ou seja, uma teologia com base em Niceia em que o modelo dogmático, o conteúdo – mais do que o modelo dogmático de Niceia – está presente, como ponto de fundamento está Karl Barth. Seja Pannenberg, seja Multmann, seja Bultmann, seja Tillich; de algum modo eles estão articulados na estrada de Karl Barth. Uns são muito diferentes de Karl Barth, apesar de a gente só poder fazer duas separações: ou você é barthiano ou você é liberal. Neste aspecto o espectro em torno de Barth ele é bem amplo, chega ao ponto de um Bultmann que quase dissolve o dogma em sacramento homilético, a pregação é o sacramento de Bultmann ou em Tillich que ele quase dissolve a doutrina numa experiência filosófica mediada pela cultura, mas ainda assim a vinculação do pensamento cristão – com o núcleo tradicional de Niceia. Mesmo conteúdo da fé de Lutero. As experiências de lidar com essa fé vão ser alteradas. Mas o conteúdo dessa fé vai permanecer. Então sem Barth é impossível você pensar o século XIX.

Quando ele foi sepultado em 1963 quem fez a pregação no cerimonial do sepultamento dele foi Hans Kung, teólogo católico. E na época Hans Kung dizia que finalmente havia nascido, apesar de ele estar morrendo – depois que você morre muito maior é o seu impacto – um homem que era capaz de juntar os dois cristianismos: o cristianismo protestante e o cristianismo católico. O cristianismo católico quanto da ênfase de Barth na unidade, na positividade, no fato de ele não tolerar uma igreja que se rasgasse, que se dividisse; e protestante por conta do vínculo dele com a Bíblia. Ele fazia todo esse discurso passar pelo funil da Bíblia. Ainda que a Bíblia acabasse se tornando, em última análise, um depósito positivo, não hermenêutico, da Palavra de Deus, da Revelação de Deus. Daí uma das consequências da teologia de Barth é a teologia hermenêutica de Ebering, porque eles perceberam que Barth considerava que a igreja era quase um ouvido sem nenhuma participação no processo de interpretação. Você, ele, eu, nós não interpretamos, não interagimos com a Escritura, nós recebemos passivamente a doutrina.

O elemento sacerdotal está muito presente na fala de Barth, como se o clero, o pastor, ele fosse um intermediador da doutrina positiva. Mas com isso a Bíblia se torna mero objeto de manipulação, ou seja, ela não tem participação efetiva no processo, apesar de que se considera a teologia na palavra de Deus. O paradoxo é que esta palavra quase se desintegra, a doutrina engole a Palavra. Já a teologia em si mesma pressupõe que a Palavra não é fixa, ela é dinâmica, então há uma necessidade de um processo de interpretação e esse processo de interpretação acaba conspirando um pouco com a positividade da doutrina. Tem esse paradoxo e Hans Kung percebeu que Barth juntava os dois aspectos.

O problema protestante essencialmente é de que a Bíblia é o fundamento, mas há a vertente católica da unidade, da positividade da doutrina.









A TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO E O PROTESTANTISMO BRASILEIRO

A TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO E O PROTESTANTISMO BRASILEIRO


Faço questão de publicar esta matéria aqui no meu blog, por falar de um homem que deu sua vida inteira para ver mudada a ênfase do evangelho na triste realidade do povo latino-americano. Eu estou falando de Richard Shaull, mestre de Rubem Alves. Não que eu concorde com todas as ideias de Shaull, principalmente aquelas que têm a ver com o marxismo, mas pela sua entrega, dedicação, postura e seu espírito de luta.  

Millard Richard Shaull nasceu na Pensilvânia em 24 de novembro de 1919, durante a I Guerra Mundial. Originário de uma família presbiteriana piedosa, camponeses conservadores, estudou Sociologia numa instituição de tradição anabatista, Igreja dos Irmãos, o Elizabethtown College. Aí, sofreria a influência dos reformadores radicais, como Thomaz Münzer.

Como os menonitas, os Irmãos levavam os problemas sociais, as questões de justiça e paz aos alunos. A própria Sociologia era uma ciência incipiente na qual se acreditava pouco. Era admirável que uma instituição evangélica já se interessasse por ela. Já envolvido com os estudos teológicos, em Princeton, Shaull conheceria o pensamento do teólogo da Universidade de Praga, Josep Luki Hromadka, profundamente envolvido com as questões da Igreja na Europa, especialmente no nazismo incipiente, discutindo as grandes questões e compromissos com o Reino de Deus. Politicamente, Shaull interessava-se pelo socialismo cristão de Hromadka. Esse teólogo, que chegara a receber o Prêmio Lênin da Paz, do governo russo, deplorou a honraria quando seu próprio país foi invadido. Foi o fundador da Conferência Cristã pela Paz, em 1958, e foi extremamente atuante no acontecimento histórico denominado “A Primavera de Praga”, em 1968. É notável como Hromadka buscava a paz diferentemente do que era senso comum, a “pax americana”, um mundo sem grandes guerras.

John Mackay, o reitor que retirou Princeton do fundamentalismo teológico que dominara o notável seminário desde o início do século XX, tem muito a ver com o interesse de Shaull pela América Latina. Esteve aqui, antes, como missionário presbiteriano, e conhecia nossas carências, além do predomínio teológico profundamente conservador. O vigoroso missionário da teologia dialética de Karl Barth, influenciou-o sobre as questões da igreja latina, especialmente o protestantismo ecumênico que impressionava muito o jovem estudante de Teologia (a publicação princetoniana The Fundamentals representava o pensamento dos teólogos presbiterianos do Fundamentalismo. Eram os mais importantes da época Benjamin Warfield, os irmãos Hodge, Cyrus Scoffield, John Machen, que dominaram Princeton por quatro décadas). A partir do fim da década de 30, Shaull, como estudante, toma contato com a teologia reformada e protestante originária da Europa, com K. Barth, R. Bultman, E. Brunner, Hromadka.

A extraordinária revista Theology Today, fundada em 1944, representaria a reversão do domínio fundamentalista em Princeton. Richard e Reinhold Niebuhr marcariam sua influência na teologia presbiteriana, a partir de suas cátedras no Union Seminary de Nova Iorque, com profundas e interessantes incursões na Antropologia Teológica. O enfoque começa a mudar o bibliocentrismo teológico no sentido da ênfase cristológica barthiana (Karl Barth, Dogmática da Igreja), e pouco depois a teologia política que inspirou a resistência da Igreja ao nazismo, e a profundidade de E. Brunner, que estava ensinando nos EUA, fugindo do nacional socialismo de Hitler.

Dizer que não havia fundamentalismo na Europa, a partir desses fatos, é romantismo. Como se entenderia um protestantismo tão envolvido institucionalmente com o Estado nazista? Um colchete caberia aqui, para uma citação de uma obra de Dietrich Bonhoeffer, Ética. Esta obra surgiu em meio à II Guerra Mundial, inconclusa, editada anos depois de sua morte, quando tudo desmoronava no mundo ocidental. Experimentava-se a decadência do protestantismo, e com ele a ética cristã, calcada em valores abstratos. A pergunta é esta: de onde virá a libertação? E Bonhoeffer responderia: “apenas alguém preso a Deus se sabe chamado para a ação obediente e responsável.” Diria mais, que em Cristo não se realiza uma ideia abstrata de amor. O cristão é colocado no meio do mundo e seus dilemas, seu agir responsável o identifica nas situações concretas, como a idolatria da morte.

Emil Brunner, teólogo suíço contemporâneo de Dietrich Bonhoefer, que ensinara na América e terminara a vida como mártir cristão enforcado como prisioneiro político na Alemanha, foi responsável pela “conversão” de Shaull à humanidade de Jesus de Nazaré. Albert Shweitzer oferece os fundamentos para a segunda fase da pesquisa do Jesus Histórico: Jesus de Nazaré é um Jesus escatológico, mas condicionado pelo apocalipsismo profético do judaísmo formativo; não é um Jesus convincente, moderno, doutrinário, como o da Teologia Liberal do século XIX, e depois dela, a Teologia Existencial de Bultmann, nesse caso, escandalosa, pois desmonta a mitologia sobre as questões do cristianismo primitivo.

O Cristo demitizado não confere com o Cristo da religião neotestamentária, sua imagem historiográfica não se conforma com o Jesus da história. Para Bultmann, portanto, estamos reduzidos a uma interpretação da história de Jesus sob o ponto de vista da sua relevância para a fé, o Cristo do querigma faz presente a salvação, aqui e agora, existencialmente, na vida de cada um que o aceita. Só em 1953 se daria a oportunidade de superação dessa concepção. Ernst Käseman, contestando a concepção existencial pura da pessoa de Cristo em Bultmann, na afirmação de que a história de Jesus “é importante para a fé, tão somente.” Esse Jesus “nos fala a partir de realidades constatadas aqui,” diria Käseman, e não num mundo ideal, celestial, espiritualizado.

Wolfhart Pannenberg o acompanha. Fala de uma ação de Deus na história humana. Também não é suficiente afastar os conteúdos religiosos da história da fé cristã primitiva, e experimentarmos uma conversão existencial ao Cristo do Novo Testamento, mas inseridos histórica e presencialmente. Sua luta se manifesta em tudo que identifica a paz, ação, reversão do sofrimento e da opressão. Essa luta é comandada daqui, e não do céu. O querigma não ficou no passado, há continuidade histórica, no sentido de que o querigma primitivo pressupõe com antecedência a presença do Jesus Histórico como antecedente obrigatório.

Também o contato com estudantes europeus, africanos, asiáticos amplia seu horizonte. Lutando com estes questionamentos, nascia um esboço para uma teologia revolucionária de transformação da sociedade que tornavam o teólogo ainda mais inquieto. Shaull volta aos Estados Unidos em 1950 para aprofundar seus estudos no Union Seminary de Nova Iorque, onde lecionaria Paul Tillich, vindo de Chicago. Shaull começa a estudar o marxismo. Não lhe faltavam elementos para contextualizar sua experiência na Colômbia. Os problemas de saúde, como resultado de sua atuação na igreja colombiana, atrapalhavam, inicialmente, a necessária recuperação para retornar à Colômbia, providencialmente. Decidiu-se por um programa de doutoramento no Union Seminary justamente com a orientação do importante teólogo presbiteriano Reinhold Niebuhr, que ajudou-o a aprofundar sua reflexão teológica, a partir do estudo da teologia de Karl Barth, especialmente.

Mas, foi aí que tomou contato também com Paul Lehmann. Este, sim, proporcionou os meios para a grande síntese do pensamento político-teológico de Shaull na direção da Teologia da Libertação (A Ética em um Contexto Cristão, um trabalho insuperável. Ética da Koinonia, com afirmações instigantes e perguntas como “o que Deus está fazendo para tornar mais humana a vida do homem”?).

O MOVIMENTO IGREJA E SOCIEDADE NASCEU AQUI, NA LATINO-AMÉRICA

Poucos teólogos conheciam o marxismo tão bem. Lehman exerceu profunda influência sobre Shaull, como destacou Galasso Faria em sua biografia do teólogo revolucionário (Fé e Compromisso, ASTE, 2002). O próprio Shaull reconhece isso (Encounter with Revolution and the Struggle – Encontro com a revolução e a luta): “Lehman me possibilitou tomar tudo que havia aprendido em Princeton acerca da graciosa iniciativa de Deus agindo para redimir a vida humana e trazer reconciliação ao mundo, situando-se firmemente dentro do processo histórico. Isto me preparou para voltar à América Latina.” Depois de cumprir seu tempo na Colômbia (1942-1951), Shaull foi encaminhado para o Chile pela Junta de Missões de Nova Iorque para o trabalho com universitários, mas houve uma mudança. Acabou vindo para o Brasil para fazer o mesmo trabalho. Nesse tempo, algumas coisas importantes já estavam marcando sua presença importante na teologia latino-americana.

Poucos anos depois, a recém-criada Confederação Evangélica do Brasil forma o Departamento de Igreja e Sociedade (1955), abrindo a discussão no ambiente evangélico para as questões sociais e políticas no Brasil. Em 1960 realizou-se um encontro reunindo 8 países estrangeiros, patrocinado pelo CMI, em S. Bernardo do Campo, S.P. Participavam economistas, sociólogos, teólogos, analisando aspectos fundamentais da realidade social. Shaull tratou do assunto “Vocação da Igreja na Evolução Política de um Povo”. O documento da Conferência Internacional de Estúdios Ecumênicos, da Conferência de Tessalônica, Grécia, em julho de 1959, já circulava com o título “Dilemas y Oportunidades – La Acción Cristiana em los Rápidos Câmbios Sociales”. Suas palavras eram cuidadosas: “O cristão deve estar envolvido nos esforços de um povo para desenvolver a sua nacionalidade, porém, livre de preocupações ideológicas”. Na verdade, seu cuidado estava em evitar que a revolução cubana, 1959, entrasse na pauta de discussões, inviabilizando o principal motivo da convocação: “O cristão participa do processo revolucionário, mas compreende que a única revolução profunda que se opera no homem e na sociedade vem através de Jesus Cristo”.

Em 1962, ano do fracasso do intervencionismo norte-americano em Cuba, e época das Ligas Camponesas de Francisco Julião, a famosa Conferência do Nordeste era a mais incisiva, dentro da temática da teologia que interessava aos latinos, em fermentação. Seu tema “Cristo e o Processo Revolucionário Brasileiro” marcou o ponto culminante da Teologia da Revolução, tendo Shaull como expoente. Waldo César, que dela participou, escreveu sobre a mesma: “O movimento Igreja e Sociedade superou, de certa forma, o nível teológico, ideológico e institucional em que se movia, timidamente, o protestantismo brasileiro. Foi, portanto, um rompimento. O compromisso da fé tinha uma nova referência, criava um vocabulário novo, outra leitura da Bíblia – e da realidade social na qual vivíamos, mais como vítimas do que participantes. O projeto Igreja e Sociedade foi uma forma de inserção na conjuntura nacional e a revelação das contradições do protestantismo no país, das coisas velhas e novas que se produziam nas igrejas e na cultura brasileira”.

O CMI assistia e a ISAL (Igreja e Sociedade na América Latina) se projetava. Em Huampani, em Lima, Peru, 1961, os evangélicos de todo o Continente estavam reunidos, preocupados com a “Iglesia en las Profundas Transformaciones Sociales”, título de um livro resultante desse encontro, de Van Lewen, mais tarde. Mais importante, porém, foi o documento tornado livro, AMÉRICA HOY: “Acción de Dios y Responsabilidad Del Hombre”. As questões apontavam para a temática essencial: “A revolução social é também a revolução da Igreja”. Em El Tabo, Chile, meados de 1965, Shaull será expulso do Brasil nessa época, a II Consulta Latino-Americana de Igreja e Sociedade prossegue o trabalho da ISAL. O campo de projetos ecumênicos estava consolidado, uma corrente teológica com o nome provisório de Teologia da Revolução, pela primeira vez na história da igreja latino-americana, referente especificamente ao Continente, e demonstra como o ecumenismo de iniciativa protestante, predominante até os dias atuais, influiu no olhar sobre a exploração cultural e econômica e seu poder no esmagamento das populações do terceiro mundo, especialmente no lado de baixo do Equador.

Richard Shaull avaliava, nesta altura, a razão por que sua teologia não se generalizava no meio evangélico. Luteranos pareciam interessar-se por suas matrizes européias; metodistas reagiam com violência, fechando a escola de Rudge Ramos, em S. Paulo; presbiterianos isolavam e depois suspendiam as atividades do Seminário do Centenário, reduto acadêmico de Shaull; o fundamentalismo recrudescia em toda parte, no Brasil; a Confederação Evangélica sofria intervenção da ditadura militar, através de evangélicos comprometidos com o autoritarismo político-religioso da época; teólogos e sociólogos envolvidos com sua Teologia da Revolução eram presos; políticos cristãos eram cassados, presos, torturados e mortos. Enfim, o “fracasso”(!) da Teologia da Revolução entre os protestantes era acentuado com a entrada dos teólogos católicos latino-americanos emulados pelo novo catolicismo a partir do Concílio Vaticano II, concluído em 1965, e da encíclica Gaudium et Spes. O encontro episcopal dos bispos latino-americanos em Medellín, em 1968, consagrava uma teologia católica, muito engajada, dentro do processo revolucionário, mas pouquíssimo interessada no ecumenismo protestante do Continente, na época, marcadamente deficiente e pouco influente (o CLAI – Conselho Latino-Americano de Igrejas) surgiria somente duas décadas depois. Lutando contra o integrismo, fundamentalismo católico, preferia-se atacar o gigante que estava dentro da sua própria casa.

TEÓLOGOS CATÓLICOS IGNORAM A TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO NA REFORMA

Foi a vez da Teologia da Libertação, que infelizmente, julgamos, pensava teológica e tão somente na igreja de Roma. Para fazer sua reforma, os teólogos católicos imaginavam uma desvinculação com a reforma de Lutero e Calvino. E Roma, por sua vez, temia uma nova reforma na igreja. Hans Küng diria que era o intento integrista de sufocar os resultados reformadores do Concílio Vaticano II. Talvez isso explique o (eqüi) distanciamento do movimento ecumênico coordenado pelo CMI.  O integrismo não se cansa de mostrar seu anti-ecumenismo dominante, ainda hoje (cf. Dominus Iesus), apesar da maioria francamente aberta do clero e do laicato brasileiros, satisfeitos, então, com as posições notáveis da CNBB em favor do ecumenismo.

Os redutos católicos seriam fortalecidos com a adesão de teólogos protestantes com mais liberdade ecumênica, em razão de seus compromissos institucionais fora do Brasil, estudavam na Alemanha, na Suíça, na França, tais e quais os católicos. São muitos os exemplos. Breno Shumann, destacadamente, recentemente lembrado e homenageado com a publicação de um livro com artigos seus e depoimentos de protestantes contemporâneos, como Zwinglio M. Dias, Carlos Cunha, Walter Altmann, Waldo César, Jether Ramalho, e outros dessa época, pela Escola Superior de Teologia da IECLB (Irreverência, Compromisso e Liberdade, Koinonia/IECLB), trabalhava na Editora Vozes ao lado de Leonardo Boff, antes que a explosão da teologia católica adotasse o conceito que veio a chamar-se Teologia da Libertação.

Além de tudo, o nome “revolução” passa a ser adotado por governos militares golpistas, anti-democráticos, de direita, contaminando uma identificação de nítidas conotações marxistas. Além de tudo, o constrangimento institucional alijava os teólogos protestantes do ponto principal a ser atacado. Sempre foram mais úteis no campo da teologia bíblica, dispensados da discussão principal. O bloco de teólogos católicos da libertação, então, estava em todo o mundo, com uma unidade teológica impressionante. Muito diferente do que acontecia com os teólogos políticos do protestantismo na América Latina. Suas frentes de trabalho contra a exploração religiosa, o recuo eclesiástico depois do avanço de João XXIII, o descaso da Igreja para com as situações desumanas na América Latina, se confundem com a luta contra o capitalismo internacional. Não havia uma percepção de que a igreja protestante merecia o mesmo conceito. De fato, a Teologia da Libertação quer uma “reforma católica” antes que uma frente ecumênica para atacar os problemas do Terceiro Mundo.

Não há lugar para Shaull na Teologia da Libertação, do ponto de vista ecumênico, o que praticamente se definiu em 1973, na famosa Conferência de Genebra, onde estavam também os reformados, como Jürgen Moltman. Liderados por Juan Luis Segundo e Gustavo Gutiérrez, a recusa do princípio protestante da Reforma, base teológica em Lutero e Calvino (da qual os católicos pouco sabiam e os protestantes que dele não abriam mão) definiu a dispensa dos teólogos protestantes do bloco da Teologia da Libertação. Pouco interesse havia pela insistência de Shaull nos conteúdos transformadores da Reforma, especialmente os doutrinários procedentes das questões sobre os princípios “sola gratia,” “sola fide” e “sola scriptura.”

A polêmica da paternidade do nome se incendeia. Se havia o combate ao racionalismo escolástico e tomista, Calvino e Lutero, como Tomás de Aquino, mereceriam a mesma atenção. [Nota: Leonardo Boff destoa dos colegas católicos, no entanto. Escrevendo na Revista Latino-americana de Teologia, jan./abril 1984, (“Lutero entre la Reforma y la Liberación”), disse: “Lutero provocou um enorme processo de libertação. Ele será sempre um ponto de referência obrigatório para todos os que buscam a libertação e sabem como lutar e sofrer por ela”. Em 1991 Richard Shaull o homenageava, enquanto editava seu livro A Reforma Protestante e a Teologia da Libertação (Pendão Real, 1993: Tradução de Eduardo Galasso, Abival Pires da Silveira e Gérson Correia de Lacerda). Pontos essenciais da Teologia da Libertação são destacados neste livro: Lutero e a Libertação, A Reforma Luterana e a Libertação Hoje, A Bíblia: Fonte de Verdade que nos Liberta, O Desafio dos Reformadores Radicais, Rumo a uma Reforma Radical Hoje].

TEOLOGIA PARA A LIBERTAÇÃO DO SOFRIMENTO INJUSTO DO POVO LATINO-AMERICANO

O principal discípulo de Shaull, Rubem Alves, que emprestou ao movimento o nome do livro que o cunhou: Teologia da Libertação (título de sua dissertação de doutoramento em Princeton, por editores transformada em Teologia da Esperança Humana, ainda em 1967), que não se apoiava em J. B. Metz, o grande nome católico, e sim em Moltman e Harvey Cox – este mudava suas primeiras posições sobre a secularização e pós-modernidade – expoentes protestantes da teologia política em discussão, naquele momento. A suspeição sobre a palavra “revolução” era um impedimento, também. Mas não para os teólogos da libertação, também acusados de concessões excessivas ao marxismo. Para Marx e Engels, sob o capitalismo e dentro do capitalismo a revolução se dá contra a sociedade burguesa, alcançando o estado democrático burguês, concomitantemente. O problema é que o estado liberal é camaleônico, aproveitador de nomenclaturas, e se diz capaz de fazer a “revolução dentro da ordem constitucional”. Um marxista não concordaria de forma alguma, pois a classe reacionária não se transfere para a revolucionária. A atuação de Shaull no meio universitário deu-lhe a certeza de que a concepção marxista prevalecia no meio estudantil. Assim era na CEB (Confederação Evangélica do Brasil), na UCEB (União Cristã de Estudantes do Brasil), e na ISAL (Igreja e Sociedade na América Latina), com suas preocupações cristãs de interpretar a revolução marxista. Os estudantes cristãos com os quais Shaull dialogava compreendiam a mensagem (Alternativa ao Desespero, Imprensa Metodista, 1955). Exatamente nesse ano dom Hélder Câmara convocava o episcopado católico para uma conferência geral.

Em 1962, o dominicano Carlos Josapha chama Richard Shaull para o debate, os fóruns denominados Brasil Urgente, que mantinham também um semanário, procuraram esse teólogo protestante. Foi convidado para ensinar no seminário dominicano de Brasília, o que não se concretizou porque a ditadura militar também o fechou. Não é preciso dizer que o Seminário Presbiteriano do Centenário, também fechado, como esse dominicano, continuou funcionando na clandestinidade. Também a Universidade Nacional de Brasília, federal, estava prestes a inaugurar, com sua colaboração, um centro para estudos teológicos. Mas Shaull foi expulso do Brasil. Os levantes sociais eram causados pelo sofrimento injusto do povo, a fé deveria conjugar seus esforços com os movimentos revolucionários que brotavam debaixo da ditadura militar, interpretando a luta contra todas as formas de injustiça através do testemunho da fé no Reino de Deus. O encontro da fé com a pobreza e a opressão era expressão do compromisso cristão. Estes conceitos teológicos gerados sob a influência de Shaull não foram esquecidos.

Rubem Alves foi um discípulo que compreendeu Shaull como ninguém. Orientado por ele no mestrado em Princeton, e depois por Harvey Cox, que já abandonava a Teologia da Secularização, aprofundou conceitos de teologia política cristalizando esse pensamento no magnífico livro “Toward a Theology of Libertation” (Por uma Teologia da Libertação), em 1967, em sua dissertação de doutoramento. O futuro utópico do Reino de Deus aponta para a transformação da ordem de injustiça vigente. Shaull já declarara que um equívoco existia na concepção que dele tinham seus críticos, e também de muitos dos adeptos de sua teologia: “Quando Helmut Golwitzer, enquanto eu ensinava em Princeton, referiu-se a mim como a primeira pessoa a tratar teologicamente a revolução, e quando fui chamado ‘teólogo da revolução’, senti que isso representava um grande equívoco sobre quem eu era”, disse Shaull. Até porque Hélder Câmara, já em 1955, na Conferência do Rio de Janeiro, reunindo os bispos do Brasil, já começava a falar em ‘revolução dentro da paz’. Além do mais, um outro elemento passou a ter mais importância em sua teologia, o que aprendera com Paul Lehmann o levara também a compreender o drama da redenção, como reconhecimento da intervenção libertadora de Deus na história” (heilgechichte).

O marxismo também significava a negação de certos valores humanistas muito caros, como a responsabilidade protestante na modernidade, o calvinismo inicial, que Weber não considerou positivamente, se não muito mais tarde (Weber teria dito que “os discípulos tendem a distorcer o pensamento de seus mestres em favor de suas novas teses”), as liberdades individuais, coisa que os teólogos da Teologia da Libertação desconsideraram por não pertencerem à tradição da Reforma, em sua maioria. Mas nem assim se fazia justiça a Shaull, que também declarara: “meu encontro com o marxismo não estava fazendo de mim um marxista, mas um cristão melhor” (Christian Faith and Marxism). A perspectiva profética e escatológica do marxismo, que olha o presente à luz de um futuro novo, a utopia tão bem representada por Ernst Bloch, como uma visão de um mundo transformado, eram muito bem assimiladas pelo grande teólogo.

Outro aspecto do marxismo contrariava Shaull, a tendência de separar realidades espirituais das materiais, o desprezo quase completo pela religião cristã. Nem a religião dos profetas, o “javismo”, nem a apostólica, “o cristianismo”, interessava aos marxistas, aparentemente. Mas a conversão de Roger Garaudy ao catolicismo, começa a contestar o lugar comum. A substituição completa e cabal do pensamento religioso pelo pensamento político era para Shaull uma negação de uma fé utópica que o próprio marxismo encampara. Outra vez, o próprio E. Bloch, marxista genial, com seu estudo magistral sobre Thomaz Münzer e a utopia do protestantismo radical, vinha em seu socorro. Shaull percebeu a distância que havia entre esses dois universos conceituais, e que não se ajustavam mais à realidade e à busca de uma sociedade mais justa. Tocado pelo inacreditável sofrimento do pobre, ao mesmo tempo sensibilizado para transformar as estruturas crescentes de exploração, a indústria da morte, notadamente no terceiro mundo, e cristalizada na América Latina, bem próxima, uma vez mais se viu obrigado a reexaminar seus conceitos. Encantou-se com as comunidades eclesiais de base, as CEBs, que representavam na realidade social o que a Teologia da Libertação pregava.

Desde o início, Rubem Alves, discípulo de Richard Shaull, que teve o seu livro Towards a Theology of Liberation publicado pela Corpus Books, Washington, 1969, discutia a linguagem da Teologia da Esperança – fazia uma crítica à linguagem da teologia contemporânea européia, estudada em Barth, Bultmann e Moltmann. A crítica visava demonstrar como a linguagem teológica até então estivera sempre voltada para realidades metafísicas e meta-históricas, e assinalava o nascimento de novas comunidades de cristãos, animados por uma visão e por uma paixão pela libertação humana, e cuja linguagem teológica se tornava linguagem histórica. Também a linguagem da “teologia da esperança”, se bem que funcionasse como um corretivo com relação à teologia dialética e existencial, continuava ainda “tangencial à história.”

A teologia da libertação fez questão logo de diferenciar-se da chamada Teologia da Revolução, que encontrava sua primeira formulação no contexto da conferência sobre “Igreja e Sociedade” do Conselho Mundial de Igrejas (CMI) em Genebra em 1966. Era a retomada, em uma nova situação política mundial, de um tema já anunciado, no início do século, pelo teólogo batista norte-americano do Social Gospel, Walter Rauschenbusch, que já em sua primeira obra Christianiaty and the Social Crisis (1907) escrevia: “A ascética cristã disse que o mundo era mau e o abandonou. A humanidade está à espera de uma revolução cristã que diga que o mundo é mau, mas trate de modificá-lo”; e de teólogos suíços do socialismo religioso como Hermann Kutter e Leonhard Ragaz, do mesmo período. Em Genebra, o tema da revolução foi introduzido no debate ecumênico pelo teólogo norte-americano, com vasta experiência nos problemas da América Latina, especialmente na Colômbia e no Brasil, Richard Shaull, que não pretendia desenvolver uma teologia sistemática da revolução, como alguns pensaram, mas apresentar o problema da relação entre vocação cristã e participação dos cristãos na luta revolucionária. Para Shaull, a vocação cristã pode alimentar uma autêntica vocação revolucionária, entre outras vocações. Rubem Alves, no texto inédito publicado pela REDES, do IFTAV (Instituto de Filosofia e Teologia da Arquidiocese de Vitória - EES), em fevereiro deste ano, dissertação elaborada sob a orientação de Shaull, ainda no início da década de 60, talvez lance luz sobre o assunto.

O debate sobre a relação entre cristianismo e revolução era enriquecido com a contribuição de teólogos europeus como Helmut Gollwitzer, que vinculava o conceito de revolução ao de Reino de Deus: “o ‘Reino de Deus’ é o conteúdo de uma promessa que revoluciona o presente”; e Jürgen Moltmann, que unia o tema escatológico da esperança, que descortina os horizontes do futuro, com o tema apocalíptico da “ruptura” com o passado, e assim vai-se ao encontro do futuro, “rompendo” com o passado. De fato, “os símbolos e as imagens bíblicas sublinham a descontinuidade, a condenação, o fim do mundo e a irrupção de algo absolutamente novo.” Hugo Assmann logo observava que semelhante teologia “geral” da revolução se torna genérica, abstrata, porque rodeia o tema, trata de problemas teológicos contextuais (Reino de Deus, apocalíptica) e “fica vagando longe dos fatos.”

Johann Baptist Metz, entre 1965-1968, já elaborava um programa de Teologia Política que logo reunirá também outros teólogos, entre os quais o próprio Moltmann, que pretendia dessa forma dar concretude à sua teologia da esperança. A teologia latino-americana da libertação e a teologia política européia convergem naquela que pode ser definida como a reviravolta política da teologia nos anos 60, mas trata-se de duas figuras teológicas diferentes sob vários aspectos. Antes de mais nada, são duas teologias praticamente contemporâneas: a Teologia Política origina-se diretamente da conferência de Metz no congresso de Toronto no verão de 1967; e a Teologia da Libertação, como já vimos, do relatório de Gustavo Gutiérrez no encontro pastoral de Chimbote no verão de 1968, mas nascidas em contextos diferentes; não se pode, pois, derivar a teologia da libertação da teologia política, considerando a primeira como uma forma latino-americana de teologia política, como o fizeram apressadas análises, não somente na Europa, mas também na América Latina.

Além disso, estas duas teologias entraram em tensão desde o começo, como ocorreu na áspera discussão do Simpósio de Genebra de 1973 organizado pelo Conselho Mundial de Igrejas e com a polêmica Carta aberta de 1975 de Jürgen Moltmann ao teólogo argentino José Miguez Bonino, autor de Fazer teologia em uma situação revolucionária (1975). Gutiérrez aprofundou a já mencionada intuição metodológica do ensaio Práxis de libertação, teologia e anúncio (1975) em outros ensaios recolhidos na parte IV de A força histórica dos pobres (1979), onde aborda expressamente o tema do confronto entre teologia da libertação e teologia progressista européia, da qual a teologia política é a ponta mais avançada. Trata-se de duas teologias profundamente diferentes, pois se movem em horizontes e contextos diferentes e procuram enfrentar desafios diversos: enquanto a teologia progressista está atenta aos desafios da racionalidade crítica e da liberdade individual no contexto de uma sociedade forjada pela burguesia, a teologia da libertação tem como interlocutores os ausentes da história, que na América Latina estão se tornando o sujeito histórico de um processo de libertação popular e isso implica um questionamento da ordem social, econômica, política que os oprime e os marginaliza, e certamente também da ideologia que pretende justificar esta dominação (Gustavo Gutiérrez). O teólogo peruano recrimina a teologia européia, mesmo a progressista que procura encarregar-se dos problemas postos pela modernidade, por não questionar as bases históricas concretas sobre as quais o mundo moderno se constituiu. Não lhe foi possível separar os momentos históricos que envolviam as teologias protestante e católica.

No que diz respeito à teologia progressista do “mundo adulto” de Bonhoeffer, eis o que escreve Gutiérrez: “Mas, se Bonhoeffer às vezes notou o inimigo fascista que atacava a sociedade liberal pelas costas, ele foi menos sensível ao mundo de injustiça sobre o qual essa sociedade concretamente se apoiava.” A diferença entre as duas teologias depende, em última análise, de uma ruptura política: “Os setores sociais explorados, as raças desprezadas, as culturas marginalizadas são o sujeito histórico de uma nova compreensão da fé”. A profunda análise metodológica de Teologia e prática (1978), de Clodovis Boff, identificou os elementos estruturais do discurso da Teologia da Libertação, deixando claro que sua peculiaridade epistemológica residia na assunção da mediação sócio analítica.

Essa mediação é necessária para interpretar o real, que, no caso da relação entre teoria e práxis, é o social. Mas a mediação sócio-analítica pode ser ignorada ou assumida de maneira incorreta: o “teologismo” a ignora, na medida em que substitui a mediação sócio-analítica pela teologia, à qual delega a função de dizer tudo, como se a teologia pudesse pronunciar-se a respeito de tudo sem a mediação das ciências; o “bilingüismo”, ao invés, assume a mediação sócio-analítica, mas sem articulá-la no discurso teológico.

Na análise de Clodovis Boff, a teologia política praticaria uma espécie de “bilinguismo”, que faz duas leituras “sinóticas” do real, chegando a fórmulas vagas do tipo “a fé implica a política”; “o Evangelho tem também uma dimensão política”; “a Igreja tem inclusive uma missão de caráter social”, em que a mediação sócio-analítica não deixa de ser assumida, mas é apenas justaposta ao dado teológico, sem uma articulação propriamente dita, capaz de condicionar a mediação hermenêutica e a mediação prático pastoral; um “bilinguismo” que às vezes se configura também como “mistura semântica” de dois gêneros linguísticos, o sociológico e o teológico’. Poucos sabem que o diálogo cultural, sócio-analítico, como Clodovis Boff considera, antropológico, latino, como método da teologia voltada para a história de opressão da América Latina, vinha sendo desenvolvida por teólogos que acompanhavam Shaull, especialmente no presbiterianismo brasileiro, onde um seminário inovava. O Seminário do Centenário foi fundado em 1959 e fechado pela ditadura em 1968, passando à clandestinidade (Richard Shaull, Joaquim Beato, Claude E. Labrunie, e outros, foram seus fundadores, na qualidade de ex-aluno, homenageio-os nessa memória). Não poderíamos esquecer Breno Shumann, Rubem Alves, Jether Ramalho, Waldo César, que contribuíram enormemente para o funcionamento e revolução no ensino teológico desta instituição onde estudei, e dali ordenado pastor na Igreja Batista.

As dificuldades políticas e eclesiásticas, em que pouco a pouco se envolveu a Teologia da Libertação, fizeram que a tensão e a polêmica inicial entre teologia política e teologia da libertação se transformassem em um confronto construtivo, logo iniciado, entre posições diferentes, onde a diferença se deve em última análise a uma “ruptura política” (Teologia da Libertação, Gustavo Gutiérrez, 1971), à diversidade do “lugar social” (Clodovis Boff) em que atuam, de um lado, os teólogos políticos, europeus e norte-americanos e, de outro, os teólogos latino-americanos.

Recolhido ao ambiente acadêmico, lecionando em Princeton, e afastado do ecumenismo proposto pelo CMI, voltado na década de 80 para as questões do mundo que preparava-se para a globalização, dito pós-moderno, ingenuamente envolvido com o desarmamento e tentativas de interpretar uma possível guerra nuclear em caminho, logo depois, empolgado pela “queda do muro de Berlim”, a “Perestroika”, “Glasnost”, Shaull começava a se interessar novamente pela América Latina, ciente de que nem mesmo a modernidade se realizara aqui, quanto mais o que se pretendia colocar como uma teologia para a pós-modernidade, como já escrevia Henrique Dussel. Além do mais, a secularização não fazia sentido, aqui. Uma religiosidade explosiva se manifestava, permeada por espiritualidades orientais, movimentos religiosos brotando, como o Movimento Carismático, o Neopentecostalismo. Nenhuma teologia interpretava bem, ou dava acolhida a estes movimentos. Shaull, no entanto, observava o pentecostalismo a partir de sua presença na Universidade Bíblica de Costa Rica, onde teólogos de profundo preparo e receptivos às teologias políticas (Bernardo Campos, por exemplo) iniciavam e introduziam estudos de grande importância para uma consciência de transformação social.

A MASSA OPRIMIDA CLAMA PELA TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO E DO ESPÍRITO

Seu penúltimo livro, em parceria com o discípulo de várias décadas, o sociólogo Waldo César, “Pentecostalismo e Futuro das Igrejas Cristãs”, apresentado como uma pesquisa interdisciplinar concluída em 1997, traz algumas conclusões incríveis. Uma delas é que a Teologia da Libertação representa uma boa resposta para os pobres e oprimidos abaixo do Equador, e os pentecostais constituem a grande massa evangélica a quem interessa uma proposta teológica com fundamento bíblico capaz de alimentar sua ansiedade pelo Reino de Deus. Outra, mais que visível, refere-se ao fracasso das igrejas históricas em aproximarem-se da grande massa de pobres e oprimidos. Quando muito, desenvolveram um conjunto voltado para a comunhão ecumênica, aí com um grande sucesso, porque o catolicismo brasileiro, inédito em relação aos outros catolicismos latinos e mundiais, também se envolveu com o institucionalismo e na unidade visível, em um conselho igualitário brasileiro (Conic) diretamente envolvido com o ecumenismo mundial (CMI). Enquanto isso, “seu” pentecostalismo está voltado para atender às ideologias da classe média. “Acredito que o pentecostalismo, inclusive o neopentecostalismo, se espera desenvolver uma ética de liberdade solidamente firmada nas Escrituras, precisará dar muito mais atenção ao que acontece na comunidade pentecostal, expressivamente composta pelos pobres e oprimidos do sistema”, declarava no último curso que aplicava, em Vitória, Brasil, poucos meses antes do seu falecimento. Alguns dos principais problemas do pentecostalismo estão na influência que recebe do fundamentalismo reinante também nas igrejas históricas: o moralismo evangelical e fundamentalista. Acrescentaríamos o “renascimento cristão” e seu apocalipsismo biblicamente deformado. Diria Shaull: “O pentecostalismo corre riscos de deixar-se dominar pela cultura materialista e egocêntrica que caracteriza o protestantismo latino-americano, tornando-se, como se percebe nas igrejas históricas, adepto fervoroso e entusiasta do mundo neoliberal e globalizado”. A descoberta e o acento para a vida no Espírito, o reconhecimento dos “dons da graça”, porém, são prenúncios da possibilidade de uma nova ética de liberdade que desafiará o fundamentalismo e o conservadorismo imobilista do protestantismo tradicional.

Seu interesse pelas CEBs continua, cita-as como exemplo bem-sucedido da Teologia da Libertação aplicada à vida em comunhão. Os pobres são preferenciais para Deus, o Reino e a sua justiça alcançam as políticas públicas e sociais. Contudo, “somente pela renovação de nossa fé e a vida no Espírito estaremos em condições de nos envolver com os pentecostais em uma reflexão ecumênica da qual todos poderemos aproveitar” (Pentecostalismo e o futuro das igrejas cristãs, Vozes/Sinodal, 1a. Edição, p.253). As comunidades pentecostais livres e independentes representam uma tendência de juntar os pobres para uma vida em comunidade aberta para resolver ou procurar soluções para os problemas sociais que se cristalizam nas periferias, justamente onde se experimentam as propostas do Evangelho do Reino de Deus com mais intensidade.“Minha imersão no pentecostalismo foi uma experiência importante no meio de uma gente que tem uma fé compulsiva, tão cheia de sentido que determina uma vida cheia de sentido, que determina sua vida e destino”, dizia ainda em seu livro.

Se considerarmos que Richard Shaull, morrendo na véspera de completar seus 83 anos de idade, depois de anos combatendo uma enfermidade implacável que não o impediu totalmente de trabalhar, viveu instantes de espiritualidade que consignariam uma reversão quanto à sua luta contra a tendência da teologia protestante de rejeitar ou ignorar o pentecostalismo bíblico ou histórico, não só na América Latina, mas na América do Norte e no mundo europeu, estaremos errados. Inteiramente. Os oprimidos por quem interessou-se a vida toda, até o último instante, quando preparava partes do culto fúnebre que seria celebrado ao fim de sua própria travessia, na Bryn Marl Presbyterian Church, sendo um dos seus cinco pastores e pastoras, na chegada à terceira margem da qual Rubem Alves gosta de falar, citando Guimarães Rosa. A luta do oprimido foi o motivo de toda a sua luta. Algo especial aconteceu, o transcendente indescritível o tomou por completo, na convivência com pentecostais latinos e norte-americanos.

Quando o autor destas linhas o saudava lembrando as palavras de Paul Tillich numa releitura dos escritos daquele teólogo que também o inspirara nos últimos tempos, Shaull acenava e balançava sua cabeça afirmativamente: “Presença Espiritual de Deus”. Deus permanece entre os homens mesmo quando é expulso e rejeitado, como se faz com o pobre e desvalido. Talvez, a chave para evitar o esvaziamento da Teologia da Libertação pudesse estar aqui, uma teologia que também seja capaz de ler os significados do Pentecostes bem da Graça libertadora presentes na Causa do homem de Nazaré.

Breves referências bibliográficas:
A Reforma Protestante e a Teologia da Libertação, R. Shaull, Pendão Real, 1993
Fé e Compromisso, Eduardo Galasso Faria, ASTE, 2002
O Novo Rosto da Missão, Luiz Longuini Neto, Ultimato, 2002
Surpreendido pela Graça, Richard Shaull, Record, 2003
Pentecostalismo e Futuro das Igrejas Cristãs, Vozes/Sinodal, 1999
A Teologia do Século XX, Rosino Ganbellini, Loyola, 1998