quinta-feira, 17 de julho de 2014

A HERMENÊUTICA DE RUDOLF KARL BULTMANN

"Não é o verbo que se fez carne,
mas é a carne que se fez verbo”.

É de Bultmann a máxima supracitada. Nela, ele aventa a ideia que as “mensagens dos fatos” são mais importantes do que os “próprios fatos”. “A fé não se atém ao ‘Jesus pregador’, mas sim ao ‘Jesus pregado’, proclamado Cristo. Como personagem da história, o Mestre da Galileia é importante, sim. Mas não como critério da fé.”

Para Bultmann crer não significa “acreditar em fatos”. Segundo o teólogo, “crer é uma nova maneira de enxergar a própria existência, de compreender-se, de interpretar sua vida”.
A teologia existencialista de Bultmann é proveniente do teólogo e filósofo dinamarquês Sören Kierkegaard e do filósofo Martin Heidegger. Com este último, ele teve um grande convívio.

Foi Bultmann que fez a primeira teologia do Novo Testamento. Mas o que há neste misterioso teólogo que tenta demitologizar as narrativas episódicas encontradas nos evangelhos, oferecendo outro jeito de interpretar os milagres cristãos?

De acordo com o teólogo nascido em Wiefelstede, no norte da Alemanha, “a linguagem predominante na Bíblia é de natureza mítica, conflitante com a ‘cosmovisão’ científica e tecnológica da modernidade. Para desobstruir o acesso à fé importa evitar a confusão entre ciência e mito e distinguir entre fatos históricos e simbologia religiosa”.

Conforme a ideia de Bultmann, a exegese só pode ser livre de premissas se isto subentender uma “não pressuposição dos resultados da exegese”, isto é, se o intérprete antes de confrontar-se com o texto estivesse livre de pressuposições sobre o mesmo. Por outro lado, será impossível isso, que é o seu conceito fundamental, visto que o exegeta aborda o texto guiado pela pré-compreensão do próprio intérprete.

Bultmann afirma que por mais objetivo que o hermeneuta pretenda ser ao abordar um tema, ele não pode escapar à compreensão que dele tem: “Resulta que uma compreensão, uma interpretação, sempre está orientada por um enfoque... Isto, porém, inclui que ela nunca está isenta de premissas, mas precisamente, ela está dirigida por uma compreensão prévia do assunto, consoante a qual ela pergunta ao texto” (O problema da Hermenêutica, 1950, p.206).

A CONTIGUIDADE DE SEU CONCEITO FUNDAMENTAL
 
Bultmann procura provar suas assertivas através de três pilares argumentativos, a saber:
 
1. A exegese livre de preconceito.Preposição fundamental: A rejeição do método da alegorese.
Bultmann distingue entre alegoria e alegorese. Alegoria consiste no próprio gênero literário que pergunta pelo sentido tencionado pelo texto; enquanto alegorese é uma forma de eisegese. Cita como exemplo de alegorese a interpretação de Fílon sobre uma ideia estóica, o uso de Dt 25.4 por Paulo em 1 Co 9.9, e o texto de Gn 14.14 em que os 318 servos de Abraão são interpretados como profecia da cruz de Cristo na epístola Barnabé (9.7s). Isto posto, a interpretação alegórica, segundo Bultmann, só é válida quando é exigida pelo próprio texto. A alegorese, por outro lado, “é uma forma crassa e infiel de abordar o texto; eisegese...” Está claro nestes casos que “o exegeta não ouve o que o texto diz, e sim fá-lo dizer aquilo que ele, o exegeta, já sabe de antemão.”

2. A exegese dirigida por preconceitos.
Preposição fundamental: Os relatos históricos dos discípulos serem estritamente fiéis por se basearem na convivência destes com Cristo, e a consciência messiânica de Jesus.
 

Segundo Bultmann, tanto um quanto o outro, somente pode ser demonstrado pela pesquisa histórica. Bultmann concluiu seu argumento afirmando que: “Toda exegese que é dirigida por preconceitos dogmáticos não ouve o que o texto está dizendo, mas fá-lo dizer o que ela quer ouvir”.

3. A Exegese pode ser livre de preconceitos, mas jamais será livre de premissasPreposição fundamental: A premissa imprescindível é o método histórico ao se inquirir os textos.
 

Para Bultmann, o fato de a exegese não ser livre de premissas não tem caráter fundamental, pois “cada exegeta está determinado por sua individualidade, isto é, por suas tendências e hábitos específicos, por seus dons e pontos fracos”. Assim, a investigação do exegeta é ampliada ou ínfima a partir de “seus dons” e “seus pontos fracos”. Neste sentido, o “exegeta elimina sua individualidade para educar um ouvir de interesse puramente objetivo.”


EXPOSIÇÃO DO MÉTODO HISTÓRICO-CRÍTICO


1. Bultmann perfila que o método histórico deve ser aplicado utilizando a exegese gramatical: “um texto deve ser interpretado segundo as regras da gramática...”, e, segundo o autor, levando os matizes estilísticos dos textos “... à exigência de que a exegese histórica observe o estilo individual do texto”. Estas duas regras desembocam na observação sincrônica e diacrônica da linguagem: “a observação de que cada texto fala na linguagem de sua época e de sua esfera histórica... o exegeta precisa conhecer o condicionamento histórico da língua daquela época da qual provém o texto a ser explicado.”


2. Bultmann, a partir desse raciocínio, problematiza a respeito dos idiomatismos hebraicos e sua influência sobre o grego neotestamentário: “Onde e até que ponto o grego neotestamentário está determinado pela linguagem semítica?” Bultmann pressupõe então, que, o estudo das literaturas apocalípticas, rabínicas, dos textos de Qumran e da historiologia da religião semita são conditio sine qua non para uma compreensão satisfatória. Cita, de modo sintético, uma abordagem diacrônica do termo grego pneuma.


3. O método histórico para Bultmann, implica na premissa de que a história é uma unidade no sentido de uma contextura integrada de efeitos e por isso mesmo “... a concatenação de curso histórico não pode ser quebrada pela intervenção de poderes sobrenaturais do além, significa portanto, que não pode haver ‘milagres’ nesse sentido”.
4. Bultmann, no afã de conformar as Escrituras aos padrões modernos, entendia que a Bíblia estava sujeita aos mesmos princípios filológicos e históricos aplicados a qualquer outro livro, e por isso mesmo, os milagres e as intervenções de Deus na história deveriam ser desmitologizadas, pois “... a ciência histórica não pode constatar uma atuação de Deus, mas apenas constata a fé em Deus e na sua ação”. A partir dessa perspectiva, a ciência não pode constatar esse episódio como fato histórico, porém, deixa a critério do intérprete: “Mas ela própria na qualidade de ciência, não pode constatá-lo nem contar com esta possibilidade, ela somente pode deixar por conta de cada um se ele quer enxergar atuação de Deus num evento histórico...”; continua afirmando que “os textos bíblicos não podem constituir exceção, se é que queremos entendê-los historicamente.”


5. Bultmann considera o exercício de interpretar o texto historicamente como uma necessidade, já que se trata de uma língua estrangeira, costumes anacrônicos e cosmovisão estranha ao exegeta. Traduzir, segundo Bultmann, “significa tornar compreensível, e pressupõe compreensão.” Essa compreensão da história pressupõe a “compreensão das forças atuantes a concatenarem os fenômenos individuais.” Essa força para Bultmann são aspectos “sociolinguísticos” tais como problemas sociais, necessidades econômicas, paixões, ideias e ideais humanos que transparecem no texto a ser interpretado. Neste sentido, dificilmente, apesar de completo esforço, se chegará a uma visão uniforme, pois “no caso de cada historiador individual sempre preponderá determinado enfoque ou perspectiva.” O conceito bultmanniano é que cada exegeta esteja consciente de que seu enfoque é unilateral ao inquirir o fenômeno a partir de determinada perspectiva. Assim, “a compreensão histórica é necessária a compreensão do objeto" (das sachliche Verständnis). Em suma: a compreensão histórica irá pressupor compreensão do objeto em pauta na história e das pessoas que agem na história.


6. Desta forma a exegese sempre pressupõe certa compreensão dos objetos pelo intérprete, que se manifesta direta ou indiretamente nos textos. Isto é o que Bultmann chama de contexto vivencial ou “Lebenszusammenhang” no qual se encontra o intérprete. O quadro histórico só é falsificado, segundo Bultmann, quando o exegeta “considerar sua compreensão prévia uma compreensão definitiva”, pois o evento histórico (geschichtlich) só poderá ser reconhecido no futuro: “o evento histórico faz parte do futuro.”
7. Concluindo seu argumento, Bultmann formula cinco teses relacionadas às consequências da exegese dos textos bíblicos. A quarta tese que trata do princípio existencial, provavelmente foi e será a que mais expressa o método exegético de Bultmann. A quinta mostra o relativismo bultmanniano, de que a compreensão de um texto nunca é definitiva, pois fala para dentro da existência. O papel do exegeta, segundo Bultmann, em sua conclusão, é que o exegeta “precisa ouvir a palavra da Escritura como palavra falada para dentro de sua situação histórica específica, ele sempre entenderá de forma sempre nova a palavra antiga”, isto é o que Bultmann chama de quadro conceptual ou “Begrifflichkeit”.



Rev. PAULO CESAR LIMA 
Pastor Presidente da Catedral da Assembleia de Deus
em Jardim Primavera, Duque de Caxias, RJ.

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