Sempre que ouvimos as palavras fé e sofrimento, seja aonde for,
nos reportamos mentalmente a Jó, uma das personagens mais intrigantes de toda a
Bíblia. Fazemos isto quase que instintivamente: uma autodefesa contra a
ameaçadora possibilidade de perdermos a fé. Isto porque não há nada mais
desestimulador para a fé do que o desencanto de não sermos atendidos por Deus
nas horas de tribulação e sofrimento pelos quais passamos. Todavia, conquanto
tenhamos Jó como o nosso paradigma psicológico para os momentos de dor e
agonia, tenho por certo que 99% dos cristãos ainda não conseguiu entender o
drama deste herói da fé. Digo isso com certeza, porque todas as análises feitas
e passadas até aqui sobre o sofrimento de Jó, com raríssimas exceções, tentam
apenas preservar o dogma da retribuição – a forma de compreender o sofrimento
como sinal evidente de punição pela culpa -, sem aprofundar o drama de um homem
que se vê atormentado por uma concepção religiosa acerca de Deus extremamente
sádica e tirana, que o violenta com as suas formas simplistas de explicar o
sofrimento humano. No fundo, todos os religiosos contemporâneos seguem a mesma
linha de raciocínio de Elifaz, um dos “conselheiros” (entre aspas) de Jó.
Segundo aquele, Jó estava pretendendo ser mais sábio do que a própria tradição
dos antepassados, destruindo a religião, que, no decorrer dos tempos, acumulou
explicações para todos os acontecimentos. Elifaz, por isso, tenta reduzir o
caso de Jó à busca de causas, eliminando tudo o que possa haver de novo em sua
situação. Aliás, as explicações comumente dadas pela religião sobre o
sofrimento humano, quase sempre eliminam tudo de novo que possa haver numa
determinada situação.
A concepção religiosa acerca de Deus sob a qual Jó viveu tem tudo
a ver com a nossa prática religiosa atual. Nos dias de Jó, por exemplo, o
sofrimento era sempre explicado como resultado de um pecado não confessado
diante de Deus. Aliás, a maior tortura de se viver uma religião assim não é
tanto com a possibilidade de se ficar doente, mas sim com a obrigatoriedade de
ter que ser curado, para provar isenção de culpa.
Infelizmente, nós vivemos esta patologia comportamental ainda hoje
em muitas culturas evangélicas, que continuam enxergando o sofrimento como algo
extremamente incompatível com a fé. Em razão disso é que muita gente ou dá uma
de “paciente Jó” sublimando e verticalizado o sofrimento por que passa, por
medo de descrer em Deus, ou, na tentativa de sair da situação de embaraço,
perambula de oração em oração, confessando culpas imaginárias para ser perdoado
e curado.
Por isso é que as filas de pessoas à procura de prosperidade e
solução de problemas não param de crescer pelas igrejas afora. Todavia, aquilo
que poderia ser tão construtivo para a Igreja de Jesus Cristo tem-se
constituído num desastre teológico. Pois agravar a situação de pessoas já tão
desesperadas, da culpa de não conseguirem as coisas por falta de fé, é um ato
criminoso contra a simplicidade dos que buscam a Deus sinceramente. Digo isso
porque o único comportamento humano que pode ser caracterizado como algo
contrário a Deus é a arrogância, a indiferença e a rejeição – o que não é o
caso aqui. Ora, as pessoas que frequentemente procuram, numa oração, refrigério
para os seus problemas é porque, no mínimo, acreditam que Deus pode ajudá-las.
Por isso quando Jesus sentia de curar a multidão que acorria a Ele, curava a
todos, ficando de fora apenas os indiferentes e os que o rejeitavam.
A vida de Jó pode ser descrita como a vida de alguém que teve
coragem de buscar Deus fora dos espelhos religiosos, das teologias
padronizadas, das tradições engessadas, porque já não admitia ter que viver a
sua história de dor e de sofrimento aceitando a triste ideia de que tudo era
resultado de um pecado não confessado.
Jó, audaciosamente, ousa ir contra a interpretação acerca de Deus,
que todo tempo tenta prever e conduzir os seus atos, transformando-o num reles
ídolo da sorte.
Por essa sua “intolerância religiosa”, Jô foi submetido a
verdadeiros interrogatórios, pelos seus confrades, que chegaram unanimemente a
um mesmo veredicto sobre a sua sorte: culpado.
Convenhamos, fazer um miserável acreditar que a sua miséria é em
razão de um pecado não confessado em sua vida, é tramar contra a justiça e
fazer da mentira verdade.
Et gloria est Dei!
Rev. Paulo Cesar Lima
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