Eu já li dezenas de livros onde seus autores, na tentativa de
amenizar a dor de alguém, envidam todos os esforços no sentido de tentar
explicar a teologia da dor, elaborando uma espiritualidade da doença, da
provação, do sofrimento padecido em honra da fé na pessoa de Jesus ou em
consonância com qualquer dogma que seja. Alguns desses autores, curiosamente,
apontam na direção de que Deus quer fazer conosco um tratamento e por
isso devemos resistir até o final. Outros, mais rigorosos, apelam para o dogma
da retribuição, inferindo que por trás de toda a dor está alguma falha ou
culpa não confessada. Um terceiro grupo, extremamente simplista, deduz que a
dor que alguém esteja passando trata-se de uma “prova” divina, que, afinal,
redunda em glória e exaltação. Há aqueles ainda que culpam o diabo, e pronto.
Finalmente, há pouco tempo um grupo de pessoas excêntricas começou a adotar a
idéia de uma possível influência hereditária. Ou seja: sofremos por causa da
nossa árvore genealógica maldita.
Muito bem. A primeira opinião é falha, porque mostra um Deus
perverso sob o pressuposto de profilaxia. A segunda apresenta a imagem de um
Deus barganhador dos louvores humanos. A terceira é a forma mais medíocre de
solucionar o problema da dor, porque faz de Deus o seu autor. A quarta, ao
contrário da primeira, exclui Deus do cenário da história de quem sofre,
porque, segundo seus advogados, o sofredor está sempre nas mãos do diabo. A
quinta e última peca porque confunde problema bio-genético-hereditário com
questões teológicas.
Estas respostas a dor vêm fazendo parte do cristianismo há
muito tempo: desde as culturas evangélicas mais remotas até as mais modernas,
levantando as piores polêmicas, bem como criando os mais tendenciosos silogismos
filosóficos sobre a existência do bem e do mal, tema que foi encarnado pela
teologia medieval e que, por insistência, apareceu em boa parte do tempo na
teologia contemporânea.
Eu não tenho dúvidas de que estamos pisando em terreno abso-
lutamente desconhecido. Desconhecido, porque a teologia da dor precisa ser
esclarecida, contudo de forma menos espiritualizada.
Queremos abrir os olhos, olhos novos, sobre o sofrimento como
fenômeno, sem substituir a dogmática e a espiritualidade das religiões, cuja
pedra de toque é precisamente a maneira como se saem do confronto com o
sofrimento e o mal em geral.
É de Shusaku Endo, eminente intelectual japonês,
cristão, as indagações no seu notável romance, Vulcano. Nele ele
questiona: “Será que os japoneses precisam mesmo do cristianismo, já que não
possuem o sentido do pecado? Sem sentido do pecado, como motivar a procura de
redenção (do pecado)? Será que podemos distinguir a verdadeira compaixão do
desejo de controlar os outros, a pretexto de salvar suas almas?”
Hubert Lepargneur discute
o assunto sobre a questão do sofrimento de forma inteligente apresentando o
seguinte arrazoado: “Mas quem pode afirmar que o mal em si existe? O que existe
seguramente é o encontro do mal com o sujeito humano (neste sentido admitimos
o testemunho: O mal existe, eu o encontrei). Temos de ficar atentos ao mal
antes de sua rotulação: ‘mal’ não será antes do mais um julgamento de valor
para apontar aquilo que me contradiz? que se opõe a mim? O mal em si, se
existe, é algo indefinido, ambíguo: pode servir para o bem ou para o prejuízo
do sujeito humano. Isto, antes mesmo de falarmos em ideologia, porque a crença
vai ajudar o indivíduo a caracterizar o mal segundo categorias rígidas,
pré-determinadas como numa tarifa medieval de pecados ou moderna de preços.”
Não
sem fundamento, os filósofos afirmam que o Ser [Deus] existe, por si, mas não
o Mal, isto é, o mal absoluto. Existem males relativos, que geram sofrimentos
subjetivos, mas não por isso irreais. O que é a civilização se não um enorme
Sistema para combater males relativos? Produz bens de serviços para vencer
males relativos: a fome gera todo o sistema da agricultura e da indústria do
agro-alimentício; a nudez que nos pode tornar vítimas do frio e do sol ardente
gera o sistema da produção dos tecidos e vestidos; a sujeição às intempéries e
o desejo de privacidade geram o sistema habitacional e assim por diante; a
insegurança gera os sistemas do Estado e dos seguros sociais de todo tipo. Sem
ameaça da dor e do sofrimento, o que seria da civilização humana? Consulto médico
e aceito cirurgia porque alguma dor me está incomodando; e se não for sofrimento
físico mas mental, vou consultar psicólogo, psi-quiatra e até pago caro para
me deitar no divã de algum psicanalista de renome. Pergunto sinceramente, se
desaparecesse da humanidade não apenas a dor mas até o sofrimento e qualquer
ameaça de sofrimento, o que ocorreria com a civilização humana? Respondem os
utopistas. Isto destruiria as civilizações terráqueas e talvez aniquilaria
nossa frágil espécie. Ela vive de esperança de felicidade e de certeza de
dor.
Et gloria est Dei!
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