sexta-feira, 25 de abril de 2014

TEOLOGIA DO SOFRIMENTO

Teologia do Sofrimento

 

 O ser humano é natural e sadiamente propenso à alegria de viver, quando não apenas ao prazer do momento. “Mas o sofrimento insiste em ser notado. Deus sussurra em nossos prazeres, fala em nossa consciência, mas grita em nosso sofrimento: ele é o seu megafone para despertar num mundo surdo, escreve C. S. Lewis em seu célebre The Problem of Pain” (O Problema do Sofrimento). “Não há dúvida”, continua Lewis, “de que o sofrimento como o me­gafone de Deus é um instrumento terrível, podendo levar à rebelião final, que não dá lugar ao arrependimento. Mas ele fornece também a única oportunidade que o perverso pode ter de emendar-se.” É lógico que essa é uma interpretação religiosa do sofrimento que vai além dos dados da antropologia. Tremendo mas ambíguo poder do mal, cujo valor ou contravalor depende de como o sofredor interpreta o próprio sofrimento. Talvez tenhamos maior objetividade para com o sofrimento dos outros. Deus nos livre de fazer a apologia do mal, nem sequer da dor ou do sofrimento: é puro fogo em nossas mãos. Livre-nos de aumentar sua carga para os outros. Isto nos lembra os políticos-Janus: Uma face para lastimar de público o arrocho salarial e os horríveis sofrimentos do povo que os elege, a outra face para tomar as decisões que engor­dam seus próprios emolumentos, suas mordomias, seus privilégios, inclusive a custo da fome do povo, que os elege.
 
 
Eu já li dezenas de livros onde seus autores, na tentativa de amenizar a dor de alguém, envidam todos os esforços no sentido de tentar explicar a teologia da dor, elaborando uma espiritualidade da doença, da provação, do sofrimento padecido em honra da fé na pessoa de Jesus ou em consonância com qualquer dogma que seja. Alguns desses autores, curiosamente, apontam na direção de que Deus quer fazer conosco um tratamento e por isso devemos resistir até o final. Outros, mais rigorosos, apelam para o dogma da retribuição, inferindo que por trás de toda a dor está alguma falha ou culpa não confessada. Um terceiro grupo, extremamente simplista, deduz que a dor que alguém esteja passando trata-se de uma “prova” divina, que, afinal, redunda em glória e exaltação. Há aqueles ainda que culpam o diabo, e pronto. Finalmente, há pouco tempo um grupo de pessoas excêntricas começou a adotar a idéia de uma possível influência hereditária. Ou seja: sofremos por causa da nossa árvore genealógica maldita.
 
 
Muito bem. A primeira opinião é falha, porque mostra um Deus perverso sob o pressuposto de pro­filaxia. A segunda apresenta a imagem de um Deus barganhador dos louvores humanos. A terceira é a forma mais medíocre de solucionar o problema da dor, porque faz de Deus o seu autor. A quarta, ao contrário da primeira, exclui Deus do cenário da história de quem sofre, porque, segundo seus advogados, o sofredor está sempre nas mãos do diabo. A quinta e última peca porque confunde problema bio-genético-hereditário com questões teológicas.
 
 
Estas respostas a dor vêm fazen­do parte do cristianismo há muito tempo: desde as culturas e­vangélicas mais remotas até as mais modernas, levantando as piores polêmicas, bem como criando os mais tendenciosos silogismos filosóficos sobre a existência do bem e do mal, tema que foi encarnado pela teologia medieval e que, por insistência, apareceu em boa parte do tempo na teologia con­­temporânea.
 
 
Eu não tenho dúvidas de que estamos pisando em terreno abso-­ lutamente desconhecido. Desconhecido, porque a teologia da dor precisa ser esclarecida, contudo de forma menos espiritualizada.
 
 
Queremos abrir os olhos, olhos novos, sobre o sofrimento como fenômeno, sem substituir a dogmá­tica e a espiritualidade das religiões, cuja pedra de toque é precisamente a maneira como se saem do con­fronto com o sofrimento e o mal em geral.
 
 
É de Shusaku Endo, eminente intelectual japonês, cristão, as inda­gações no seu notável romance, Vulcano. Nele ele questiona: “Será que os japoneses precisam mesmo do cristianismo, já que não possuem o sentido do pecado? Sem sentido do pecado, como motivar a procura de redenção (do pecado)? Será que podemos distinguir a verdadeira compaixão do desejo de controlar os outros, a pretexto de salvar suas almas?”
 
 
Hubert Lepargneur discute o assunto sobre a questão do sofrimen­to de forma inteligente apresentan­­do o seguinte arrazoado: “Mas quem pode afirmar que o mal em si existe? O que existe segura­mente é o encontro do mal com o sujeito humano (neste sentido admitimos o testemunho: O mal existe, eu o encontrei). Temos de ficar atentos ao mal antes de sua rotulação: ‘mal’ não será antes do mais um julga­mento de valor para apontar aquilo que me contradiz? que se opõe a mim? O mal em si, se existe, é algo indefinido, ambíguo: pode servir para o bem ou para o prejuízo do sujeito humano. Isto, antes mesmo de falarmos em ideologia, porque a crença vai ajudar o indivíduo a ca­racterizar o mal segundo categorias rígidas, pré-determinadas como numa tarifa medieval de pecados ou moderna de preços.”
 
 
Não sem fundamento, os filó­sofos afirmam que o Ser [Deus] existe, por si, mas não o Mal, isto é, o mal absoluto. Existem males rela­­tivos, que geram sofrimentos subje­tivos, mas não por isso irreais. O que é a civilização se não um enorme Sistema para combater males relati­vos? Produz bens de ser­viços para vencer males rela­tivos: a fome gera todo o sis­tema da agricultura e da indús­tria do agro-alimentício; a nu­dez que nos pode tornar vítimas do frio e do sol arden­te gera o sistema da produção dos te­cidos e vestidos; a sujeição às intempéries e o desejo de privacidade geram o sistema habitacional e assim por diante; a insegurança gera os sis­temas do Estado e dos seguros sociais de todo tipo. Sem ameaça da dor e do sofrimento, o que seria da civilização humana? Consulto mé­dico e aceito cirurgia porque alguma dor me está incomodando; e se não for sofrimen­to físico mas mental, vou consultar psicólogo, psi-­quiatra e até pago caro para me deitar no divã de algum psicanalista de reno­­me. Pergunto sinceramente, se desaparecesse da humanidade não apenas a dor mas até o sofrimento e qualquer ameaça de sofrimento, o que ocorreria com a civilização humana? Respondem os utopistas. Isto destruiria as civilizações terráqueas e talvez aniquilaria nossa frá­gil espé­cie. Ela vive de esperança de felicida­­de e de certeza de dor.

 

Et gloria est Dei!

 
Rev. Paulo Cesar Lima

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